Supressão das questões de gênero nos Plano de Educação e a militância fundamentalista
Neste dia, 24 de junho, dia de São João, encerra-se o prazo dado pela Lei N. 13.005, de 25 de junho de 2014, para que os Estados e Municípios do Brasil, aprovem seus respectivos Planos Estaduais e Municipais de Educação.Transcorridos 12 meses da autorização determinada pelo artigo 8 da Lei, poucos são os estados e municípios que cumpriram com a missão. Segundo levantamento da Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino – SASE, do Ministério da Educação, apenas 4 estados: Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Maranhão já têm seus planos estaduais de educação sancionados. Os Estados de Pernambuco, Paraíba, Espírito Santo e o Distrito Federal já aprovaram os seus planos, mas falta a sanção dos governadores.
No âmbito municipal há uma variada dispersão na aprovação dos Planos municipais. Em alguns estados, a aprovação alcançou índices significativos, mas a média nacional está em 30% apenas.
Como integrante do Fórum Nacional de Educação – FNE e do Fórum Distrital de Educação – FDE, tenho acompanhado com muita preocupação, particularmente, a tramitação dos referidos Planos de Educação, onde as questões de gênero assumiram verdadeiros “mantras”, que interditam o debate sobre os problemas na agenda da educação.
No Distrito Federal, após uma exitosa Conferência Distrital, e o trabalho do Fórum Distrital de Educação – FDE, que envolve todos os segmentos da sociedade, produziu-se um texto bastante avançado, superior ao texto nacional. Entretanto, enfrentamos no parlamento local, forte resistência por conta dos debates em torno das questões de gênero, expressadas por um espectro de alianças que envolve diferentes grupos religiosos contrários a expressão de gênero.
Desde a chegada do Plano Distrital na Câmara Legislativa do DF, em abril, e na sua tramitação na primeira Comissão, a da Educação até a aprovação final, nada menos que 101 emendas foram apresentadas, 80, visando retirar as expressões de gênero. Na tramitação do PDE na primeira Comissão, a da educação, 45 emendas visando retirar as expressões de gênero foram rejeitadas, o mesmo aconteceu na Comissão de Orçamento e Finanças.
Entretanto, na reta final de tramitação, no dia 16 de junho, na Comissão de Constituição e Justiça – CCJ, nada menos do que 4, dos 5 parlamentares, incluindo a presidência, eram identificados com posições contrárias a inscrição das expressões de gênero no Plano Distrital, devido as suas justificadas origens de cunho religioso. Nesta Comissão, todas as emendas foram readmitidas e levadas a Plenário, onde o PDE foi aprovado, com a supressão das questões de gênero com apenas 7 votos contrários dos parlamentares.
O PDE tem 21 metas, 230 estratégias e as questões de gênero apareciam tão somente em 8 estratégias. Não havia nenhuma meta explícita sobre questões de gênero. As estratégias remetiam ao alcance mais geral e no caso em questão, contribuíam para eliminar as formas de discriminação. Os parlamentares sequer se importaram em corrigir erros, que foram cometidos pelo exíguo tempo que se teve na confecção do texto e concentraram seus esforços na pregação fundamentalista contra as questões de gênero.
Embora ampla articulação ecumênica e manifestações como as do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), através da sua secretária-geral, a pastora, Romi Bencke, e ainda, vários membros da academia, programas de pós-graduação em ciências da religião, nada foi suficiente para convencer o dogmatismo que se instalou aqui no DF como de resto em todo o País. Em todos os rincões a pregação é a mesma: supressão das questões de gênero.
Há uma pregação fundamentalista contra as questões de gênero, que não deixa dúvidas de que vivemos uma onda conservadora que se desloca do campo da moral para a política, preparando a antessala do fascismo. Na história da humanidade o patrulhamento não serviu para boa coisa a não ser produzir o atraso e retardar o avanço da sociedade.
Muitas questões que poderiam ter sido aperfeiçoadas e outras corrigidas no PDE, foram transformadas num embate rasteiro e circunscrito ao ódio às questões de gênero. As posições defendidas pelos que se colocam sob as diversas opções religiosas cegaram o debate. Lamentável que o fundamentalismo tenha fincado raízes exatamente onde não deveria.
Penso que a Nota ponderada e produzida pela Associação Brasileira de Antropologia – ABA expressa muito bem o que deveria ter sido o debate na regulamentação dos Planos Estaduais e Municipais de Educação, a qual convido a leitura.
Remi Castioni – Fac. Educação da UNB
Nota sobre a supressão de “gênero” e “orientação sexual” nos planos municipais, estaduais e nacional de educação
A Associação Brasileira de Antropologia considera extremamente preocupante o processo político que tem envolvido a aprovação dos planos nacional, estaduais e municipais de educação, no que diz respeito à proposta de supressão sistemática das expressões “gênero” e “orientação sexual” neles presentes. A ABA considera especialmente grave o fato de a proposta de supressão atingir, no âmbito de tais planos, artigos ou parágrafos em que se estabelece como papel das escolas o combate às desigualdades educacionais produzidas por diferentes tipos de discriminação social.
Evocando discursos religiosos, alguns parlamentares têm tratado como “ideologia”, a consolidada reflexão científica brasileira e internacional que gira em torno da produção e reprodução de desigualdades sociais, que se justificam a partir de certas concepções normativas sobre gênero e sexualidade. No plano do conhecimento, procura-se de fato suprimir o direito de alunos e alunas das escolas brasileiras ao acesso à produção científica de diferentes disciplinas sobre o assunto, afinadas com os princípios de direitos humanos e, em especial, à reflexão que enfatiza aspectos sociais e políticos relacionados à produção e manutenção de desigualdades. No plano propriamente político, tais iniciativas contrariam, diretamente, alguns dos mais básicos valores republicanos, como a laicidade do Estado, o direito à informação e à livre expressão do pensamento; e, indiretamente, ameaçam os esforços empreendidos por diferentes instituições brasileiras, entre as quais a ABA se inclui, no sentido da construção de uma sociedade mais justa e plural.
A análise das relações de gênero, assim como das relações raciais ou das de classe, contribui de forma marcante para o conhecimento e o enfrentamento das desigualdades históricas no país. Ao manter o tema da “igualdade de gênero e de orientação sexual” nos planos de educação não se está formulando uma “ideologia de gênero” ou procurando anular diferenças percebidas entre as pessoas, mas garantir um espaço democrático onde tais diferenças não se desdobrem em desigualdades. Trata-se de garantir que a escola não seja um espaço de reprodução da violência, mas de respeito à diversidade e de formação para a cidadania.
Associação Brasileira de Antropologia – ABA e seu Comitê Gênero e Sexualidade.