O seminário “Desenvolvimento nacional: dilemas e perspectivas” reuniu um time de especialistas, no último dia 24 de abril, para debater os dilemas e as perspectivas na área da educação, cultura e universidade. O evento vem sendo realizado no auditório Dante Barone, da Assembleia Legislativa, com o objetivo de avaliar possibilidades e propostas para a superação da atual crise brasileira. Nesta etapa, participaram o cineasta Manoel Rangel, ex-presidente da Agência Nacional do Cinema (Ancine), o sociólogo Cesar Barreira, professor da Universidade Federal do Ceará (UFCE), o cientista político Hélgio Trindade, ex-reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), e a educadora Jaqueline Moll, da UFRGS.
Ruptura democrática ameaça avanços na Educação
“Não é por acaso que cada vez que o País consegue construir um projeto voltado à educação, em todas as suas pontas, nós temos uma ruptura democrática. Não é a primeira vez que acontece e é o que estamos vivendo agora”, afirmou a educadora Jaqueline Moll, da UFRGS, referindo-se ao atual cenário da Educação no Brasil. Ela lembra que o Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado em 2014, está engavetado pelo governo Temer, da mesma forma como o regime militar, em 1964, interrompeu um plano que tentava implantar uma ideia de educação para todos no Brasil. “Nós não somos uma democracia, somos um país que vive intervalos democráticos”, afirmou.
Jaqueline destacou que o projeto das elites brasileiras sempre foi manter o povo à margem dos processos de conhecimento. Isso, segundo ela, está cada vez mais claro. “Conforme Darcy Ribeiro dizia, a crise da educação brasileira não é uma crise, é um projeto”, relembrou. Para ela, a naturalização do fracasso escolar reflete a naturalização da visão escravista de sociedade, em que alguns não têm o direito de chegar aonde outros chegam. “Berço e sobrenome ainda seguem sendo carro-chefe da toada educacional no Brasil, mesmo com todas as mudanças que foram feitas nos governos Lula e Dilma”, avalia.
A educadora expôs dilemas e desafios que precisam ser atacados para o desenvolvimento da educação brasileira. A universalização do acesso e garantia de condições de permanência (uma das metas do PNE), a permanência com aprendizagem significativa (leitura do mundo e da palavra) e a desnaturalização do fracasso escolar (superação da evasão e da reprovação) são pontos a serem contemplados. “Não é natural que uma criança de 10 anos deixe de ir à escola, que o jovem de 15 anos deixe a escola para ir trabalhar”, afirma.
Moll defende a necessidade de efetivar a educação pública como tarefa estrutural para o projeto de desenvolvimento nacional. Ela cita, ainda, outros desafios que precisam ser enfrentados, como os diálogos com as culturas infantis e juvenis contemporâneos, a sintonização com a revolução científica e tecnológica em curso, a ampliação da jornada escolar para universalização da educação em tempo integral e a melhoria das condições de trabalho e salário dos educadores. “Além de receber um dos piores salários do Brasil, os professores do Rio Grande do Sul receberam parcelado nos últimos 30 meses. Isso é um escândalo!”
Tubarões do ensino transformam educação superior em negócio
O ensino privado detém 75% das matrículas de nível superior no Brasil, informou o cientista político Hélgio Trindade. Segundo ele, o domínio do setor privado é uma decorrência da legitimação das chamadas instituições de garagem pelo Ministério da Educação. Elas começam suas operações com um ou dois cursos e vão se expandindo até se tornarem centro universitário ou mesmo universidade. “O estado brasileiro cria este animal que não existe em nenhum lugar do mundo. Essa escadinha é que criou o maior negócio que existe hoje no Brasil, que é a educação. E a educação superior é uma das coisas mais lucrativa que existem”, afirma.
Desta situação, cria-se outra ainda mais preocupante: o avanço de grandes grupos econômicos internacionais sobre as instituições privadas brasileiras. Hélgio Trindade citou o exemplo da universidade gaúcha Uniritter, comprada por uma organização norte-americana, que tem como foco o mercado da bolsa de valores. “Eles querem lucro. De repente, demitem professores de áreas que não dão lucro. Daí começa esse jogo, onde a regra é obter lucro e não produzir boa educação, com instituições amplas e de boa qualidade”, denuncia. O ex-reitor lembrou que a relação “ensino superior público x privado” não se modificou nem mesmo durante o governo Lula, quando as matrículas nas universidades federais dobraram em mais de 10 anos. De 2006 a 2016, o acréscimo de matrículas ficou em 66,8% no setor privado e 59% na rede pública de ensino superior.
Trindade falou também sobre o desmonte que acontece, hoje, no ensino público brasileiro, após 13 anos de uma “política ousada e consequente, que possibilitou a maior expansão e qualificação das universidades federais de toda a história republicana”. Ele citou avanços que o Brasil experimentou ao longo dos governos Lula e Dilma na Educação, como a criação de 40 novas universidades, que expandiu e interiorizou o ensino público superior, retirando a “lógica litorânea” das universidades federais. E destacou a ampliação do acesso e da permanência promovidos pelo Enem e REUNI, com reposição de vagas e realização de concursos.
Maior interdisclinariedade na universidade como caminho
Romper com a naturalização de problemas, como a evasão escolar, é um dos caminhos apontados pelo professor da Universidade Federal do Ceará (UFCE), Cesar Barreira, para melhorar a educação brasileira. Especialista na área de violência e segurança, o sociólogo destacou que, hoje, a escola disputa os alunos do ensino médio com o tráfico de drogas. Ao mesmo tempo, ele reconhece os avanços obtidos com a expansão de vagas nas universidades públicas. Graças às políticas implementadas, no Brasil, na década passada, hoje já é possível ver resultados, garante. “Eu tenho colegas que são filhos de favelas e, hoje, são professores e doutores na UFCE.”
Para ele, é importante discutir o lugar que a universidade e a educação básica ocupam na sociedade brasileira. A naturalização do grande poço que foi criado entre ensino público e privado é a mesma naturalização que existe com relação ao número de homicídios registrados no Brasil, compara. Na opinião de Barreira, um caminho é minimizar a insatisfação de alunos com professores, e vice-versa. “Temos que enfrentar essa situação de forma direta, inclusive para entender a universidade que podemos ter no mundo contemporâneo”, defendeu.
Outra reflexão do professor da UFCE é sobre a interdisclinariedade, que, na opinião dele, deveria ser contemplada pela universidade para responder à complexidade dos problemas contemporâneos. “Não é mais a sociologia que vai explicar o problema da violência, mas sim a sociologia casada com a antropologia, economia, medicina, história”, exemplifica.
A cultura não pode ser apenas um acessório em um projeto de nação
O cineasta Manoel Rangel abordar os dilemas e perspectivas da cultura no Brasil. Ex-diretor-presidente da Ancine, Manoel citou três momentos históricos em que projetos de nação estiveram em desenvolvimento: a gestão de Gustavo Capanema no Estado Novo, os planos nacionais de cultura nos anos 70 e a gestão Gilberto Gil no Governo Lula. Assessor do Ministério da Cultura entre 2004 e 2005, Rangel destacou que, neste período, as diretrizes da política cultural tiveram, como foco, o simbólico, o cidadão e o econômico. “Essas diretrizes alimentaram uma ação criadora, ousada e inventiva, alimentada por uma visão de nação plural e diversa, que almejou escrever a cultura como uma das dimensões do projeto nacional de desenvolvimento, e não como acessório na construção deste projeto”, afirmou.
Como principais conquistas deste período, Rangel destaca a política de cinema e audiovisual integrada à comunicação pública, a política nacional de museus e a política de direitos autorais. A gestão de Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura esboçou caminhos para a integração com a educação, mas não conseguiu realizá-la plenamente. Também, segundo ele, esboçou uma política nacional das artes e de difusão maciça das artes e cultura brasileira, além de apontar alternativas para um novo patamar de financiamento à cultura. “A gestão Gil empenhou-se em tornar a cultura uma dimensão essencial do projeto nacional de desenvolvimento. E isso só foi possível porque havia no País uma visão de Brasil que acreditava em dinamizar projetos e que acreditava em impulsionar as diversas facetas do desenvolvimento nacional”, completa.
Para o cineasta, alimentar-se da experiência desenvolvida durante os 14 anos de governo popular no Brasil é um norte para a construção de uma nova experiência de desenvolvimento da Cultura no futuro. Em um novo ciclo, Rangel afirma que as políticas cultural e educacional terão que estar profundamente articuladas, assim como as políticas cultural e de comunicação deverão ser “as duas faces de um mesmo projeto”, para promover a ampla circulação da produção artística e cultural por todo o País. “Basta que continuemos a resistir e saiamos a semear o futuro”, afirmou.
Manoel Rangel criticou o atual modelo de gestão da cultura e alertou para os impactos da Emenda Constitucional 95 (PEC do teto de gastos). Outro grave problema destacado por ele é a censura da arte no Brasil, como foi observado na exposição “Queermuseu” – cancelada em setembro de 2017 pelo Santander Cultural. “É algo inimaginável que, depois da ditadura, nós tivéssemos que voltar a defender os direitos de artistas se expressarem e de exposições acontecerem”, lamenta. De acordo com o cineasta, os encarregados da gestão cultural no Brasil, hoje, estão atônitos e amedrontados, flertando com o fascismo e a censura, endossando, de forma velada, os ataques que as artes têm sofrido.
Por fim, Manoel Rangel projeta que um novo projeto nacional de desenvolvimento emergirá nos próximos anos e o desafio é construí-lo desde já, unindo as pessoas, superando divergências e unificando diagnósticos e projetos. “Nosso desafio é ir abrindo caminho no meio da escuridão e não nos deixar abater pelos sinais de crise que nos cerca. A arte e a cultura têm uma enorme responsabilidade nessa fase de resistência, mas terá uma ainda maior na próxima vez, quando será preciso, novamente, inventar o Brasil, como inventamos o Brasil diversas vezes ao longo da nossa história. Nós faremos isso com a consciência de todas as nossas vitórias”, conclui.
Texto: ADufrgs