Discurso do governo fala em combate a supostos privilégios e “déficit fiscal”, ocultando o verdadeiro significado da Reforma: a total desobrigação do Estado com a Seguridade Social
O governo de Jair Bolsonaro apresentou no dia 20 de fevereiro o texto oficial da sua Reforma da Previdência. Vendida – e comprada por muitos – como a imprescindível solução para os problemas fiscais do país, a PEC 06/2019 propõe uma mudança radical no próprio Sistema de Seguridade Social e do papel do Estado como garantidor de condições mínimas de dignidade a cidadãos e cidadãs após uma vida de trabalho. A PEC está calcada em dois eixos: por um lado, aumentar ao máximo os obstáculos para que o/a trabalhador tenha acesso ao benefício – este já em valor reduzido – e por outro, a destruição do sistema atual de repartição e solidariedade intergeracional, substituindo-o pela capitalização, no qual cada pessoa, individualmente, poupa parte do salário para a aposentadoria. Trata-se da inversão total dos princípios da Constituição de 88 e da transformação da aposentadoria de um direito de todos e todas para um privilégio de quem conseguir economizar. É o que alerta a Supervisora Técnica do Dieese na Bahia, Ana Georgina Dias: “haverá elevação do tempo de contribuição, aumento da idade mínima para aposentadoria e o piso para os benefícios da Assistência Social poderá ficar, em alguns casos, abaixo do Salário Mínimo. Ainda que se mantenha o sistema de repartição simples no Regime Geral da Previdência Social (INSS), o aumento do tempo de contribuição casado com o aumento da idade mínima podem ter o efeito de postergar tanto a aposentadoria que, simplesmente, muitos trabalhadores não conseguirão se aposentar. Isso é verdade especialmente para as mulheres e os trabalhadores rurais. Caso o sistema de capitalização seja instituído, a situação piorará sobremaneira. Um sistema de capitalização transfere para o trabalhador toda a responsabilidade pela sua proteção social. Num mercado de trabalho heterogêneo como o brasileiro, mesmo antes da Reforma Trabalhista que flexibilizou vários direitos, com o alto nível de rotatividade e o elevado desemprego, não é exagero supor que muitos trabalhadores ficarão ainda mais desprotegidos na velhice”. Cabe lembrar ainda que no sistema da capitalização, a gestão das economias dos/as trabalhadores/as é entregue a empresas privadas que aplicam no mercado especulativo. “Alguns países, a exemplo do Chile, que adotaram esse sistema, estão fazendo o caminho de volta, uma vez que o empobrecimento dos idosos chegou a níveis alarmantes”, afirma Ana Georgina.
Déficit?
Uma das justificativas para da Reforma seria o déficit do sistema Previdenciário – tanto no Regime Geral quanto nos Regimes Próprios. Essa é uma narrativa que desconsidera tanto como funciona o financiamento da Previdência Social quanto quais as razões para este suposto desequilíbrio fiscal. Conforme explica Ana Georgina, o artigo 195 da Constituição “diz que ‘a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das contribuições sociais. A base ampla e diversificada de financiamento da Seguridade garante menor dependência das contribuições sobre os rendimentos do trabalho. Sendo assim, as receitas previdenciárias não são oriundas só das contribuições dos trabalhadores e empregadores. Desse modo, a ideia de déficit precisa ser vista com cautela, ainda que nos últimos anos tenha havido desequilíbrios entre receitas e despesas previdenciárias.” Uma das causas desse desequilíbrio são a própria crise econômica pós 2015 e a precariedade dos empregos, aprofundada pela Reforma Trabalhista, que empurra muitos trabalhadores para o mercado informal, sem contribuição para a Previdência. Em artigo publicado em março deste ano no portal ExtraClasse, a Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida Pública, Maria Lúcia Fattorelli, esclarece que “a insuficiência de contribuições sociais não se deve a um problema no modelo de Previdência Social solidária, mas sim à “crise”, que no caso brasileiro foi fabricada pela política monetária do Banco Central, que quebrou inúmeras empresas, provocou desemprego recorde e derrubou o PIB. Empresas quebradas, desempregados e informais não contribuem para a Previdência. Esse é o problema, e não a longevidade das pessoas ou a solidariedade do modelo”, escreve ela.
Como ficam os/as professores/as?
Professores e professoras do Ensino Básico e do Magistério Superior sofrerão também impactos específicos, já que a Reforma pretende, na prática, extinguir as diferenças entre o Regime Geral e o RPPS (Regime Próprio da Previdência Social). Docentes que ingressaram no serviço após 2013, com a regulamentação da Funpresp, já recebem aposentadorias limitadas ao teto do Regime Geral. A Reforma ameaça a sustentabilidade da própria Funpresp, já que ela possibilita que o governo patrocine planos de previdência complementar dos bancos, gerando concorrência; além disso, servidores públicos que recebem acima do teto terão aumento progressivo da alíquota de contribuição, que pode chegar a 22%. Outro ponto é que a PEC modifica a forma de cálculo do benefício, prejudicando especialmente os/as servidores/as da 3ª geração (ingressantes entre 01/01/2004 e 03/02/2013) e da 4ª geração (ingressantes a partir de 04/02/2013) que são os que terão importante redução dos proventos de aposentadoria se não alcançarem 40 anos de contribuição (veja na página ao lado). Esses ataques servem à narrativa de que a Reforma estaria combatendo privilégios. “Talvez a parte mais ardilosa da guerra de comunicação que enfrentamos agora por causa da Previdência é a ideia de que quem é contra a Reforma tem privilégios. Porém, quem tem mais interesse nela é o mercado financeiro”, afirma a professora Raquel Nery, presidenta da Apub. “Os professores já pagam a alíquota de 11%, inclusive os aposentados. Há previsão de aumento, que pode chegar a 16,5%. Mais 27,5% de imposto de renda, teríamos cerca de 43% do nosso salário comprometido, o que é praticamente um confisco de salário pelo Estado”, alerta. Para ela, a luta contra a Reforma da Previdência contém também em si a defesa da ideia de serviço público. “Quando nós, professores das Universidades públicas, lutamos contra a Reforma da Previdência, estamos pensando no serviço público. Nós representamos um setor que é parte dessa ideia de que o Estado deve funcionar de uma determinada maneira, deve prover determinados serviços. É a ideia de serviço público, de funcionamento do Estado que está sendo toda desmontada”, finaliza.