Todo mundo tem medo. É algo natural.
O medo faz com que as pessoas fiquem alertas contra perigos. Isso acontece desde os tempos das cavernas, quando as ameaças eram constantes e reais. É, portanto, um sentimento primitivo.
Mas e quando o medo é usado como estratégia de dominação?
Obviamente, isso não é novo e nem foi inventado no mundo contemporâneo. Impérios usaram o medo para derrotar outras nações. Da mesma forma, governantes tiranos usaram o medo para implementar um projeto de poder, colocando em prática uma dominação violenta sobre o seu povo.
O medo gera paranoias
O excesso de medo gera paranoias. Depois de instaladas, basta mantê-las sempre alimentadas. Mentiras repetidas à exaustão tornam-se “verdades” para pessoas que, via de regra, reproduzem ideias sem refletirem sobre o que estão dizendo.
O então ministro da Propaganda na Alemanha nazista, Joseph Goebbels, ensinou esse conceito, que foi muito assimilado pelos militantes extremistas da atualidade.
É o que estamos vendo o governo Bolsonaro fazer, especialmente contra as universidades públicas.
Muito dinheiro é empregado para construir e sustentar grandes redes de fake news, que espalham afirmações tão absurdas que fogem da compreensão civilizada das pessoas e precisam ser reproduzidas à exaustão para manter o poder de convencimento.
Em condições equilibradas da sociedade (ou seja, sem a influência das ondas repetidas de fake news) quase ninguém acreditaria nelas (afinal, sem tudo isso alguém seria contra as vacinas para conter uma doença que matou milhões de pessoas no mundo inteiro em menos de um ano?).
Mas por medo, as pessoas abrem mão de princípios e, muitas vezes, da própria civilidade, se tornando multiplicadores do ódio.
Medos coletivos só conseguem se estabelecer com base em propagandas massivas, constantes e repetidas. É por isso que os extremistas se aproveitam da fragilidade das redes sociais e dos aplicativos de mensagem para distribuírem as mentiras e continuar alimentando as paranoias nas pessoas.
Com o uso de centenas de milhares (ou até milhões, segundo estudos) de perfis falsos nas redes sociais, o governo de Jair Bolsonaro e seus apoiadores costumam fazer ações massivas quando desejam espalhar mentiras ou desviar o foco de seus próprios crimes.
Bicho-papão no guarda-roupas
Sabe quando a criança pequena tem medo de que algo vai sair do armário ou de baixo da cama e, por isso, nem consegue ir ao banheiro à noite para urinar? Ou quando pais contam aquela história do “homem-do-saco”? O medo do comunismo é quase igual.
Sem conhecer absolutamente nada sobre o termo (seja do ponto de vista conceitual ou da história), pessoas são levadas a criar paranoias achando que suas vidas estão ameaçadas por algum tipo de perigo invisível.
A tática dos extremistas é fazer com que as pessoas acreditem que vivem sob constante ameaça de algum inimigo (mesmo que seja invisível). Os nazistas iniciaram a Segunda Guerra Mundial espalhando mentiras sobre a “ameaça” dos poloneses, mas antes já haviam criado leis para segregar os judeus por causa da “ameaça” de contaminação da raça ariana (outra invenção). O medo fez essa segregação se tornar aceitável na sociedade alemã para, depois, se transformar no extermínio em campos de concentração e massacres que resultaram na morte de mais de 6 milhões de judeus.
O medo do “comunismo” e de outros fantasmas no Brasil é usado de forma semelhante por setores extremistas (isso inclui o governo Bolsonaro, seus membros e apoiadores mais próximos) para enganar a população (sim, nem mesmo eles acreditam nisso).
Por que o medo?
Mas se nem mesmo os extremistas acreditam nas próprias mentiras, por que eles escolheram essa tática de espalhar medos e paranoias para chegar e se manter no poder?
Porque o projeto de poder deles se resume à exploração do país no menor espaço de tempo possível.
Basta ver o esforço para destinar o máximo de dinheiro do orçamento para o sistema financeiro (que consome quase metade do orçamento federal), aprovar todo tipo de projeto que retira direitos dos trabalhadores ou que privilegiam determinadas camadas da sociedade que já são privilegiadas (como grandes empresários), ou privatizar tudo o que for possível a preço de banana (mesmo que represente prejuízos gigantescos ao país).
Não é coincidência que colocaram no comando do Ministério do Meio Ambiente alguém favorável ao desmatamento (que bateu recordes). Ele só pediu para sair porque foi pego em um escândalo envolvendo a venda milionária de madeiras ilegais e tinha medo de ser preso.
Isso significa que enquanto muitos seguidores foram levados a acreditar que estão fazendo parte de um combate do “bem x mal”, na verdade, se tornaram apenas peões num tabuleiro regado a interesses políticos e financeiros das pessoas que criam, divulgam e propagam as tais fake new sobre as ameaças que não existem, para ganhar algo com isso (dinheiro, votos, prestígio, cargos etc).
Sem distribuir essas mentiras com tanta frequência, o governo e seus apoiadores extremistas teriam muito menos seguidores.
Afinal, é difícil imaginar que parcelas consideráveis da população seriam favoráveis ao desmatamento e ao fim de seus próprios direitos.
Como uma parte da população seria contrária às vacinas ou iria preferir usar medicamentos sem eficácia comprovada? (Se isso tivesse acontecido no passado ainda teríamos que enfrentar doenças como poliomelite, sarampo, difteria e rubéola).
Como tantas pessoas atacariam a educação, a ciência, as artes, a cultura, a literatura, as universidades públicas, os professores, os cientistas, os direitos humanos, civis e trabalhistas, perseguiriam ambientalistas e ONGs ou tentariam acabar com a liberdade de imprensa, de pensamento e a própria liberdade de escolha? (ou quem defende a ditadura ou intervenção militar acha que estará livre para continuar espalhando besteiras nas redes sociais?)
A história nos mostrou o quanto é temeroso um governo que persegue educadores, pesquisadores e cientistas. Na Alemanha nazista, livros eram queimados em grandes fogueiras em praça pública. Para o pensamento totalitário, a educação é sempre um perigo.
Para a tática funcionar, o medo é estimulado com frequência
A verdade é que o projeto de poder dos extremistas só consegue se sustentar se eles convencerem seus seguidores de que existem inimigos a serem combatidos. Eles precisam transformar tudo em algo assustador. Uma ameaça constante. Isso lhes dá um tipo de coesão de grupo que faz com que as pessoas abram mão de sua própria civilidade em nome do combate a essas (falsas) “ameaças”.
Na maioria dos casos, o engajamento e a paranoia são proporcionais ao nível de exposição às fake news (há pessoas que recebem centenas de conteúdos diariamente).
Tanto é que muitos apoiadores, quando se afastam dessas mentiras (numa espécie de período de desintoxicação), acabam voltando ao estágio mais equilibrado de sua personalidade e se tornam menos radicais, abertos ao diálogo e às questões humanitárias.
É incoerente, porque todos esses elementos, por serem valorizados nos países desenvolvidos, contribuem para o alto grau de qualidade de vida e bem-estar da população. Aqui, os extremistas fazem seus seguidores acreditarem que essas são características dos inimigos invisíveis a serem combatidos.
Dessa forma, qualquer posicionamento contrário às mentiras ou absurdos do governo, é rapidamente classificado como “comunista”. Isso tem sido exaustivamente repetido por políticos profissionais em busca de apoio a seus projetos pessoais e personalidades midiáticas alinhadas com esses pensamentos.
Até a velha mídia tradicional, cujos principais veículos apoiaram a ditadura em 1964 (inclusive contra uma “ameaça comunista” que nem existia – vejam só) e são favoráveis a todas as pautas que beneficiam as “elites” do país hoje é chamada de comunista quando mostra erros, mentiras e a corrupção no governo Bolsonaro. Não faz sentido, mas é assim que os extremistas isolam seus seguidores das notícias sobre a realidade do país e do mundo (basicamente, se há elogios ao governo, a mídia está certa, mas se ela expõe os crimes do governo, aí é “coisa de comunista”).
A defesa da ciência também se tornou sinal de “comunismo” (afinal, a ciência desmente frequentemente as teorias dos extremistas).
Professores são perseguidos e instituições públicas de ensino são alvo de campanhas de difamação por serem espaços onde impera o pensamento crítico. Os extremistas, que odeiam o pensamento crítico porque poucas reflexões já são suficientes para desmontar as teorias conspiratórias deles, usam o termo como se fosse um xingamento. Eles sabem que muitos de seus apoiadores irão compartilhar seu ódio sem ter conhecimento sobre o que estão falando (do ponto de vista político, econômico, social ou qualquer outro aspecto).
Mas essa tática dos extremistas é tão perversa que não poupa nem seus próprios seguidores. Não é à toa que, na pandemia de Covid-19, as cidades onde Jair Bolsonaro teve mais votos em 2018 são justamente aquelas com maior incidência de contaminação e mortes pelo novo Coronavírus (é bom lembrar que extremistas não priorizam a vida das pessoas).
Isso vem acontecendo justamente porque há mais propensão da população dessas localidades acreditar no presidente e não seguir as medidas sanitárias e de isolamento, ou até mesmo recusar a aplicação de vacinas. Em alguns casos, os riscos de morte são 500% maiores.
As origens do fantasma
Valer-se do medo de um “fantasma” comunista para mobilizar um grupo político não é algo novo. Lá nos anos 50, nos Estados Unidos, foi usado pelo macarthismo, um movimento iniciado pelo então senador Joseph McCarthy para perseguir qualquer um que discordasse da visão política dele. Durou 3 anos, fez inúmeras pessoas perderem empregos, serem presas ou terem suas vidas destruídas. No final, o país entendeu que tudo não passava de uma farsa e o senador caiu em completo descrédito.
Mas convém lembrar que aquele era o começo da chamada “Guerra Fria” entre os Estados Unidos e a União Soviética.
Nas décadas seguintes, esses mesmos discursos ajudaram a intensificar a intervenção norte-americana nos processos políticos da América Latina. O resultado foi uma série de golpes militares que também tinham como mote o combate a esse fantasma invisível, inclusive no Brasil.
O ex-presidente norte-americano Donald Trump até tentou reviver um pouco isso, mas em uma escala muito menor, e contou com os serviços de Steve Bannon, um “estrategista” que se notabilizou por esquemas de manipulação nas redes sociais e também prestou serviços a Bolsonaro (outra coincidência?). Depois, Bannon foi preso nos EUA por desvio de verbas. A tática de Trump não colou e ele foi derrotado em 2020 por Joe Biden.
A paranoia anticomunista começou nos Estados Unidos logo após a Segunda Guerra Mundial, mas depois perdeu efeito e hoje apenas uma parcela pequena segue essas ideias (assim como acreditam que o achocolatado vendido nos mercados vem de vacas que são alimentadas com chocolate). Isso significa que aqueles que acreditam na paranoia anticomunista no Brasil estão, pelo menos, 70 anos atrasados.
Fonte: APUB