Um secretário de Cultura do Governo Federal faz um pronunciamento oficial em rede nacional utilizando a estética nazista (música, cenário) e citando o discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolf Hitler. O próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, assim como um ministro e parlamentares fiéis, recebem a visita de uma deputada alemã de um partido neonazista, neta do ministro de finanças de Hitler. Um podcaster que usa apelido de marca de bicicleta afirma que “deveria existir um partido nazista reconhecido por lei”. Um deputado federal oriundo de uma milícia digital ligado às elites criticou a criminalização do partido nazista na Alemanha. Um comentarista de um canal de televisão faz um gesto que foi considerado, posteriormente, uma saudação nazista.
O que todos esses casos recentes têm em comum? A apologia ao nazismo ou a relativização da história e daquilo que representa a ideologia nazista.
Até 2016, ano em que o Congresso aprovou o golpe institucional para derrubar a presidente Dilma Rousseff, esses posicionamentos eram considerados absolutamente incabíveis. A sociedade brasileira parecia não estar disposta a rever uma posição que foi solidificada há décadas, assim que o mundo conheceu as atrocidades cometidas pelo regime comandado por Adolf Hitler.
Mas isso mudou nos últimos anos. Uma parcela radicalizada da sociedade, seguidora e multiplicadora de ideias extremistas, tenta forçar a naturalização dos ideais nazistas. Não por acaso, isso parte geralmente de setores que apoiam o presidente Jair Bolsonaro, que tem um longo histórico de proximidade e apoio a grupos neonazistas e que repete, em parte do slogan de seu governo, um trecho de uma canção que se tornou uma espécie de hino nazista (“Alemanha acima de tudo”).
Para minimizar as críticas, os extremistas adotam o discurso de “liberdade de expressão”, como se a defesa de um regime que prega o extermínio de grupos minoritários de pessoas fosse uma mera questão de opinião. Não é.
Neonazismo cresceu no governo Bolsonaro
Não é coincidência que a apologia ao nazismo tem crescido no Brasil. Segundo pesquisas, os grupos neonazistas cresceram 270% no Brasil entre janeiro de 2019 (quando Bolsonaro tomou posse) e maio de 2021. Além disso, as denúncias de atividades neonazistas na internet aumentaram 60,7% em 2021, em relação ao ano de 2020, de acordo com dados da ONG Safernet.
Além disso, as ações não se restringiram às redes sociais. Ataques violentos contra pessoas pobres, negros e grupos LGBTQI+ aumentaram no período. A que se deve, portanto, o crescimento da apologia ao nazismo nestes últimos anos? Estes grupos sempre existiram, porém em número muito menor. Mas, com Bolsonaro no poder, houve grande permissividade para esse tipo de manifestação.
De certa forma, esses grupos passaram a se sentir legitimados e “empoderados” pelo atual governo.
Afinal, o que é nazismo?
O nazismo é o nome de uma ideologia política alemã essencialmente racista, que teve como líder maior Adolf Hitler. O racismo, o antissemitismo e a eugenia são suas bases. Associado ao antissemitismo estava a noção racista e eugenista da superioridade do homem branco germânico, ou da “raça ariana”, e a construção de um “espaço vital” para que essa raça construísse seu império mundial. Entre as conseqüências devastadoras do nazismo, a mais marcante foi o genocídio de aproximadamente 6 milhões de judeus no decorrer da Segunda Guerra Mundial, considerado o maior assassinato em massa do século XX.
Apologia ao nazismo é crime
Em vários países no mundo, a apologia ao nazismo é crime. Na Alemanha, por exemplo, o Código Penal proíbe negar publicamente o Holocausto e divulgar propaganda nazista. Uma cláusula adicionada em 2005 ao chamado “parágrafo sobre incitação ao ódio”, o número 130 do Código Penal, como uma resposta do Legislativo ao aumento de manifestações de extrema direita, prevê pena de até três anos de prisão ou multa para quem “aprovar, glorificar ou justificar” o regime nazista. Um cidadão é preso e processado se repetir em público um gesto nazista.
No Brasil também é crime. A apologia do nazismo se enquadra na Lei 7.716/1989, que é respaldada pela própria Constituição, e classifica o racismo como crime inafiançável e imprescritível. Inicialmente, não havia menção ao nazismo na legislação, que era destinada principalmente ao combate do racismo sofrido pela população negra.
Apenas em 1994 e 1997 foram incluídas as referências explícitas ao nazismo.
Não é liberdade de expressão
Mas, mesmo com uma lei que prevê prisão de dois a cinco anos, as demonstrações de apoio ao nazismo aumentaram no Brasil. Seja em discursos, pronunciamentos ou na formação de grupos neonazistas.
Esta pauta foi tema de inúmeros debates recentemente devido às opiniões emitidas pelo deputado federal Kim Kataguiri (Podemos-SP) e pelo apresentador do Flow Podcast, Monark, que afirmou que “deveria existir um partido nazista legalizado no Brasil”. Na mesma linha, Kataguiri argumentou que “por mais absurdo, idiota, antidemocrático” seja o que uma pessoa pensa, a manifestação desse pensamento “não deve ser crime”, porque “a melhor maneira de reprimir uma ideia” seria expô-la para que seja “rechaçada socialmente.” Ambos defenderam a “liberdade de expressão” ao citarem o nazismo.
No dia seguinte, o comentarista Adrilles Jorge, da TV Jovem Pan News, discutia a repercussão do caso de Monark e encerrou sua participação que foi identificada com um gesto similar ao Sieg Heil, saudação nazista que, em alemão, significa “viva a vitória”. O caso também viralizou na internet e a emissora (conhecida por dar vazão a ideias extremistas) decidiu demitir o comentarista porque o estrago à sua (péssima) imagem foi grande. Os casos levaram a Procuradoria-Geral da República (PGR) a abrir uma investigação.
Assim como o racismo, a apologia ao nazismo não pode ser considerada apenas uma questão de opinião ou de liberdade de expressão porque já na sua essência prega a inferiorização e o extermínio de determinados grupos sociais.
Ah, mas e o comunismo?
Ao tentar se desvencilhar das críticas por sua proximidade com movimentos e ideias neonazistas, o presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores tentam fazer com que as pessoas acreditem que tudo aquilo que afronta sua a ideologia extremista é “do mal”.
Sejam ideias “de esquerda”, progressistas, sociais-democratas ou mesmo liberais; sejam direitos humanos, civis, sociais e trabalhistas; seja a defesa da vida ou da liberdade de escolha; qualquer coisa que não segue a ideologia deles é taxada de “comunista” (como se fosse um xingamento). E aí reside um grave problema.
Embora não tenhamos pretensão de defender qualquer ideologia, é preciso deixar claro que o comunismo e o nazismo não se assemelham nem na forma e nem no conteúdo. São duas coisas completamente distintas.
Primeiro porque o comunismo é uma filosofia formulada como utopia por Karl Marx e Friedrich Engels no século 19, portanto muito tempo antes da experiência histórica, isto é, de governos que reivindicaram o uso do termo. As ideais básicas, inclusive, remontam à Antiguidade clássica, a partir do pensamento do filósofo grego Platão (427 a.C.), expresso na obra intitulada “A República”.
Os extremistas atribuem um zilhão de coisas ao “comunismo”, sendo que, na verdade, é uma filosofia que projeta uma reestruturação da sociedade a partir do fracasso do capitalismo, com uma organização social livre de divisões por classes sociais, propriedade privada e distribuição social do trabalho. Ou seja, todo o resto que é falado sobre isso serve apenas para desviar o foco de temas importantes (geralmente, para criar medo em apoiadores ou livrar o governo da culpa de seus próprios erros).
Já o nazismo é um movimento de extrema-direita cuja prática foi construída ao mesmo tempo que sua experiência história. Ou seja, quem formulou o nazismo, colocou ele em prática.
Isso significa que se alguém quiser defender o comunismo como um ideal, é plenamente possível porque ele não está necessariamente ligado a qualquer regime que se pretendeu ser comunista. Qualquer um pode usar o termo de forma distorcida. Já o nazismo, não, porque a ideia não existiu antes da prática. Não há diferentes formas de interpretar o nazismo. Não há como aliar qualquer conceito positivo com o nazismo.
Isso significa que as tentativas de equiparar a filosofia do comunismo com o ideal nazista não passam de estratégias que desprezam o conhecimento da história da humanidade e o bom senso.
Discurso de ódio de Bolsonaro abriu as portas
A ONG Safernet, que defende os direitos humanos na internet, identificou um recente aumento no número de sites com conteúdo nazista. Em junho de 2019, havia identificado e derrubado 1,5 mil páginas. Já em junho de 2020, conseguiu identificar e remover 7,8 mil páginas com essa temática (um aumento de 400%). Em relatório, a entidade explica que “as reiteradas manifestações de ódio contra minorias por membros do governo Bolsonaro têm empoderado as células neonazistas no Brasil”.
A questão central é que problema não se resume a esses episódios pontuais. Muito menos a saber se fulano ou cicrano seriam ou não neonazistas ou apenas parvos abobalhados. Eles são apenas a expressão pública de algo muito pior que vem crescendo nas entranhas da sociedade, e que encontrou no atual governo o embasamento político, ideológico e social que precisava para sair do esgoto.
Fonte: APUB