Chamar professores de “doutrinadores” contribuiu para aumento dos massacres em escolas no Brasil

Nos últimos anos, temos assistido a um aumento alarmante de ataques a escolas no Brasil, um fenômeno que antes era raríssimo no nosso país. 

Esse tipo de violência tem afetado não só as vítimas diretas, mas toda a sociedade, gerando medo e insegurança, principalmente entre jovens, adolescentes, familiares, professores, funcionários e servidores das unidades escolares. 

O que muitas pessoas não sabem é que esse fenômeno está diretamente relacionado ao discurso extremista que vem ganhando força no país nos últimos anos, incentivado por políticos como Jair Bolsonaro e outros que fizeram parte de seu governo ou o apoiaram, e que continuam inundando a sociedade com ideias anticivilizatórias.

Na campanha presidencial de 2018 e durante os quatro anos em que Bolsonaro comandou o Poder Executivo, facções radicais em aplicativos de troca de mensagens e redes sociais passaram a ser monitoradas por estudiosos, que identificaram como agia a base bolsonarista e os rumos que a extrema-direita brasileira estava tomando naquele período. 

Extremismo com apoio do governo Bolsonaro

Os espaços virtuais onde predominam discursos extremistas e até neonazistas têm lastro anterior a esse período. Fóruns virtuais (chamados de chans, onde usuários publicam de forma anônima), sites, blogs e comunidades fechadas propagam discursos da extrema-direita entre internautas brasileiros, especialmente os mais jovens. 

Alguns foram desaparecendo, como grande parte dos chans, mas deixaram um legado de discurso e vocabulário presentes até hoje em grupos de Telegram, canais de YouTube e comunidades virtuais.

O professor e pesquisador Daniel Cara, da Faculdade de Educação da USP, coordenou um grupo de análise sobre o perigo da extrema-direita na população jovem, ao lado de mais 12 pesquisadoras e colaboradoras. 

Segundo o relatório, várias atitudes do governo Bolsonaro ajudaram no aumento do número de atentados dessa natureza: 

– A flexibilização do porte de armas, incentivo à visão armamentista para solução de qualquer problema e facilitação para abertura de clubes de tiro;

– O incentivo à perseguição de professores nas escolas públicas, acusados de estarem “doutrinando” alunos, ao abordarem assuntos vistos como “de esquerda” (na verdade, qualquer assunto que não fosse de apoio à visão de Bolsonaro)

– E o próprio discurso do ex-presidente contra minorias e setores da sociedade que não se alinhavam a ele.

Bolsonaro acabou sendo o principal canalizador dessa lógica discursiva, de que o problema está na luta pelos direitos humanos, no respeito à lei e na luta contra a desigualdade. Ele criminalizou esses setores, chamou-os de “inimigos da nação” e incentivou um ódio primitivo no meio da população.

Não é coincidência o rápido (e perigoso) crescimento de células e grupos neonazistas nos quatro anos do governo Bolsonaro (segundo estudos da antropóloga Adriana Dias, falecida em janeiro deste ano), que adotam o mesmo discurso extremista de que há sempre alguma “ameaça interna” (novamente, qualquer coisa que não se alinhasse ao então presidente) que precisa ser enfrentada com violência. 

Assim como não é coincidência que diversos membros do governo Bolsonaro foram flagrados repetindo simbologias nazistas, como o caso do ex-secretário de Cultura, Roberto Alvim, que fez um discurso em rede nacional inspirado tanto na estética como no conteúdo do discurso do nazista Joseph Goebbels, ministro de propaganda de Hitler. 

É como se o bolsonarismo descesse às condições discursivas para emergir nesses grupos nazistas e fascistas.

Paranoia coletiva

A ideologia de extrema-direita só existe em ambientes tomados pelo medo de algo (que pode ser uma ideia, um partido, um político adversário, um grupo político que pensa diferente etc). 

Esse medo é estimulado com frequência, volume e intensidade, até se transformar em paranoia. Quando é disseminado em massa por aplicativos de mensagens e redes sociais, ele se torna uma paranoia coletiva.

Assim, os seguidores radicalizados passam a acreditar que precisam “reagir” contra essas supostas “ameaças”.

E essa reação pode se dar de várias formas: 

– Ataques nas redes sociais.

– Violência física (seja por situações do cotidiano, como discussão de trânsito, desavenças entre vizinhos ou mesmo a temática de uma festa de aniversário, ou contra instituições, como vimos no dia 8 de janeiro de 2023, quando terroristas bolsonaristas invadiram e destruíram prédios dos Três Poderes em Brasília).

– Massacres (quando grupos sociais se tornam vítimas de um atentado em maior proporção, como nas escolas).

Dentro das “bolhas” radicais, as pessoas que cometem esses atos de violência são tratadas como “heróis”. Essa lógica incentiva outras pessoas a cometerem crimes semelhantes.

É o caso dos massacres em escolas, que se tornaram assustadoramente mais frequentes desde o golpe que derrubou Dilma Rousseff, em 2016, e se acentuaram com a posse de Jair Bolsonaro, em 2019.

Não é coincidência

Nos últimos anos, professores de escolas e de universidades públicas se tornaram alvo dos discursos de ódio e das mentiras espalhadas por políticos e militantes extremistas. Com isso, parte da população passou a criminalizar os docentes, chamando-os, principalmente, de “doutrinadores”, um termo que eles usam contra qualquer profissional da educação que incentive o pensamento crítico ou questionador dos alunos. 

Ao mesmo tempo, militantes de milícias digitais, como o MBL, ganharam muitos seguidores por publicar mentiras, gravar vídeos e atacar as universidades públicas, enquanto membros do governo Bolsonaro enganavam a população, mentindo ao dizer que os professores das universidades públicas plantavam maconha e produziam drogas em laboratórios (a Universidade Federal da Bahia foi listada com uma das que estariam estimulando a “balbúrdia” na educação). 

O então ministro Abraham Weintraub chegou a ser condenado por essas mentiras, mas o estrago já estava feito: parte considerável da população já havia acreditado naqueles absurdos.

O problema é que, além de incentivar perseguições e injustiças, todos esses elementos incentivaram a violência contra professores e contra as comunidades escolares e acadêmicas.

Assim, jovens estimulados por discursos extremistas e com acesso cada vez mais facilitado a armas (por causa da política armamentista descontrolada do governo Bolsonaro) voltaram-se contra comunidades escolares.

Aumento da violência

Segundo dados do Instituto Sou da Paz, entre 2002 e 2016, num período de 15 anos, houve 5 atentados em escolas, o que significou uma média de 0,3 por ano. Nos governos Temer e Bolsonaro, de 2017 a 2022, foram 7 ataques em 7 anos, média de 1 por ano, mais que o triplo.

Se antes de 2016 os atentados tinham caráter mais “individual”, cometidos por jovens ressentidos com situações vividas no passado, isso mudou a partir de 2016, quando os crimes passaram a apresentar características cada vez mais ideológicas. 

Em novembro de 2022, um jovem vestindo máscara de movimento usada por movimentos de extrema-direita e suástica no braço matou 4 pessoas e deixou 12 feridas em Aracruz (ES). Em janeiro deste ano, um jovem vestindo suástica atacou uma escola em Monte Mor (SP). Em ambos os casos, o aprendizado veio de casa. São filhos de bolsonaristas radicais.

Episódios como o dos políticos bolsonaristas Roberto Jeferson (preso após dar mais de 60 tiros e lançar 3 granadas em agentes da Polícia Federal) e Carla Zambelli (que correu com arma em punho atrás de um homem negro com quem discutiu sobre política na rua) são exemplos de estímulos da ideologia bolsonarista à violência armamentista.

Portanto, nada disso é coincidência ou atos isolados cometidos por “pessoas desequilibradas”.

Qual o caminho?

É preciso reduzir, com muita urgência, a radicalização política no país, desmontando grupos extremistas, punindo severamente quem espalha mensagens de ódio, cobrando judicialmente a responsabilidade das plataformas digitais (fóruns de debates, redes sociais e aplicativos de mensagens) que pouco fazem para conter discursos de estímulo à violência (na verdade, lucram com isso).

Segundo o pesquisador Daniel Cara, a ausência de punições mais severas vindas do Poder Judiciário contra o discurso de ódio promovido por grupos ou indivíduos de extrema-direita também tem sido um fator determinante para o aumento da violência nas escolas. “Isso criou um clima de impunidade, porque eles acham que podem agir sem consequências”, afirma o pesquisador.

É preciso fazer uma retomada da cultura da paz, que prevalecia no Brasil antes do surgimento do bolsonarismo, além de estimular uma participação maior das escolas e dos pais dos alunos nas ações voltadas ao combate ao extremismo entre os jovens e adolescentes que, muitas vezes, se sentem apartados da sociedade (por questões econômicas e sociais) e escolhem inimigos que não têm nada a ver com a realidade que vivem (o discurso extremista acaba apresentando alternativas simplistas de ação e compreensão distorcida do mundo).

É preciso investir em medidas que fortaleçam o diálogo e o respeito às diferenças, que promovam o conhecimento crítico e a tolerância, e que desestimulem comportamentos violentos e extremistas. Além disso, é importante que a sociedade em geral se mobilize para pressionar pelas mudanças nas leis que obriguem as plataformas digitais e redes sociais a agirem de forma mais efetiva na prevenção e combate a esses crimes.

Enquanto o discurso de ódio e intolerância continuar sendo promovido por políticos e grupos extremistas, que cometem crimes dizendo que é “liberdade de expressão”, o risco de novos atentados em escolas continuará existindo. 

É preciso que a sociedade se una em defesa dos valores democráticos e do respeito às diferenças, e que as autoridades tomem medidas efetivas para combater a violência e o extremismo.

O enfrentamento a tudo isso começa pela defesa da educação e da Democracia, e pela aprovação do marco legal contra as fake news (projeto 2630/2020, que ficou conhecido como o PL das Fake News).

Fonte: APUB

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