Você consegue imaginar um país sem restrições de circulação por conta da pandemia neste momento? Um lugar onde pessoas se cumprimentam normalmente, frequentam bares e se aglomeram em shows, churrascos, feiras ou confraternizações. Mesmo assim, não há mortes por Covid-19 registradas ou um aumento significativo dos casos. Parece mentira?
Pode parecer surreal, mas este cenário é real e corresponde ao que acontece neste momento na Islândia e na Nova Zelândia, países que controlaram a pandemia em seus territórios. Por lá, foram registradas apenas 29 e 26 mortes da doença, respectivamente, em mais de um ano, e a vida está voltando ao normal.
Alguém vai tentar justificar, dizendo “mas esses países são isolados”. Pois é, mas a Nova Zelândia recebe mais de 3,5 milhões de visitantes por ano, e a Islândia recebe 2 milhões. Não é pouco, se compararmos com o Brasil, que recebe em torno de 6 milhões (sendo 60% vindos da América do Sul).
Milagre?
Então, o que explica esse contraste com os países, como o Brasil, onde as sequelas da pandemia são muito maiores?
A resposta é relativamente simples. Os países que estão conseguindo passar pela crise com menos impacto acreditaram na ciência e entregaram o controle das decisões nas mãos de cientistas e pesquisadores que, longe das interferências políticas, determinaram as regras para controle da pandemia.
Desde o registro dos primeiros casos, adotaram protocolos bastante rígidos, com testagem em massa, rastreamento dos contatos das pessoas que testaram positivo, uso obrigatório de máscaras e distanciamento.
Essa cartilha foi seguida não só pela Islândia e pela Nova Zelândia, mas por muitos outros países que hoje veem o novo Coronavírus como uma ameaça bem menor para sua população do que há um ano.
China (1,4 bilhões de habitantes e 4.600 mortes), Paquistão (225 milhões de habitantes e 18.148 mortes), Indonésia (270 milhões de habitantes e 45.796 mortes), Singapura (5 milhões de habitantes e 30 mortes), Vietnam (100 milhões de habitantes e 35 mortes), Austrália (25 milhões de habitantes e 900 mortes), Tailândia (69 milhões de habitantes e 95 mortes), Cuba (11 milhões de habitantes e 436 mortes) são alguns exemplos de países cujos governos ouviram a ciência e não brigaram com os fatos.
Deu para entender a questão, não é mesmo?
Brasil acima de todos (mas sem motivo para se orgulhar)
O presidente Jair Bolsonaro poderia ter entrado para história como o mandatário que livrou o Brasil do novo Coronavírus. Estaria consolidando seu futuro político rumo à reeleição (sua obsessão) mas escolheu fazer o caminho inverso. Por motivos complexos de compreender, escolheu pavimentar sua trajetória sobre uma pilha interminável de cadáveres.
Por aqui, as recomendações da ciência foram rejeitadas pelo presidente que, motivado por cálculos políticos, decidiu aderir a uma postura negacionista para prolongar ao máximo a pandemia.
É um caso único no mundo…
Desdenhar da ciência, nesse cenário trágico, significou abrir mão das poucas saídas que tínhamos para minimizar os impactos do vírus.
Dizer que as vacinas podem transformar alguém em jacaré (não ria, afinal, tem muitas pessoas que realmente acreditam em tudo o que ele diz) não contribui. Participar de dezenas de atividades que geraram aglomeração também não passa uma mensagem que fomenta o cuidado. Desincentivar o uso de máscaras e o isolamento social induz as pessoas a um comportamento que, segundo especialistas, é semelhante ao suicídio coletivo.
O resultado está aí: entre março e abril de 2021 o Brasil assumiu o posto de epicentro da pandemia, liderando, com ampla margem, o número de mortes.
No dia 31 de março, quando atingiu quase 4 mil óbitos em um único dia, a quantidade era equivalente a somatória de todos os outros 9 países seguintes.
Não deveria ser algo para se orgulhar, mas, por razões igualmente políticas, nem isso serviu para frear os discursos negacionistas do presidente e de seus apoiadores mais radicais.
Ciência salva
Foram os cientistas que descobriram como o vírus funciona, quais alternativas para combatê-lo e como diminuir o contágio.
No Brasil, das mais de 410 mil mortes por Covid-19, ao menos 75% delas eram evitáveis, de acordo o epidemiologista Pedro Hallal, ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) e coordenador da Epicovid-19, estudo de alcance nacional que mapeia a disseminação da doença.
O cenário seria outro, caso o Governo Federal optasse pelas medidas adequadas de contenção. O fator Bolsonaro influenciou o obscurantismo e a aversão à ciência no Brasil, desvirtuando a percepção das pessoas sobre a realidade.
A partir do falso dilema entre “salvar vidas e salvar a economia” (afinal não há economia sem pessoas vivas, coisa que até os liberais genuínos defendem), as políticas de isolamento social foram sabotadas desde o início pelo próprio presidente.
O governo brasileiro acabou andando na contramão dos outros países, não reconhecendo a gravidade da doença e não estruturando ações de testagem em massa, deixando o vírus se propagar.
Agora, enquanto outras nações já estão com as pessoas circulando, vivendo um pouco mais de tranquilidade e reaquecendo a economia, o Brasil precisa lidar com recordes de mortes e uma economia combalida.
Mesmo a contragosto do presidente, instituições científicas renomadas ligadas a governos estaduais passaram a produzir vacinas em parceria com outras instituições e empresas estrangeiras. Aí começou a se apontar uma luz de esperança para a saída da crise.
Negócio para os amigos, cloroquina para o povo
A jogada mais anti-ciência do governo brasileiro, porém, vem do lobby feito pelo presidente e seus aliados em torno da propagação de uma ideia falsa de um suposto “tratamento precoce” à Covid-19.
Em vez de apostar nas vacinas (negando centenas de milhões de doses desde o ano passado), Jair Bolsonaro resolveu tornar-se garoto-propaganda de medicamentos cuja eficácia não foi comprovada com bases científicas.
Além do imenso prejuízo aos cofres públicos (só em cloroquina foram gastos perto de R$ 100 milhões), esse estímulo tem um resultado muito perverso: seus seguidores passam a adotar comportamento muito mais negligente quando acreditam que um tipo de elixir (esse era o termo dado a substâncias às quais eram atribuídas “poderes mágicos” na Idade Média) vai salvá-las em caso de contaminação.
Além disso, o governo transferiu também R$ 1,5 milhão para que o Laboratório Químico Farmacêutico do Exército produzisse 3,2 milhões de comprimidos de cloroquina.
Tratando a situação com corriqueiro desdém, ele chegou a ser fotografado mostrando a caixa do medicamento para uma ema.
Coincidentemente (ou não), alguns dos donos dos principais laboratórios que produzem esses remédios são apoiadores ferrenhos do presidente.
Eles só não dizem que foi um “negócio da China” porque iriam desagradar sua própria base radical.
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Fonte: APUB