Emiliano José*
Quando a barra pesava, quando algum problema o atormentava, Bira punha-se a cantarolar como a se convencer de que os orixás pudessem socorrê-lo ou simplesmente como uma maneira de afastar os maus olhados e buscar socorro na poesia, que ela sempre ajuda – quanto mais quando a alma não é pequena, e a dele era do tamanho do mundo. Vai meu irmão pega esse avião você tem razão de correr assim desse frio mas beija o meu Rio de Janeiro antes que algum aventureiro lance mão pede perdão pela duração dessa temporada… O Samba de Orly era o seu refúgio, seu amparo, seu conforto.
Vai, meu irmão, vai nosso querido irmão, amigo, companheiro, mas não diga nada que nos viu chorando. Tenha certeza de que nessas lágrimas há um tanto de alegria também. Que estranho dizer isso na hora da morte, não? Alegria por sua extraordinária existência, por essa vida sementeira, por essa vida mestra – o mestre que sempre ensinou sem parecer que o fazia, o mestre que conversava alegremente, compartilhando sua erudição como quem contasse histórias à beira da fogueira em noite de lua cheia. O mestre da história, o professor da vida. Vai, meu irmão, e se puder me mande uma notícia boa. Saiba: você deixa saudades eternas.
Você se lembra menino no Central já se metendo a besta, falando em revolução, nossa musa? Lembra de você na Católica, já ligado à Dissidência, assim em maiúsculo, um grupo que se desvinculara do velho Partidão querendo fazer a luta armada? Lembra de Sarno, de Jurema, de Rui, todos presentes na sua despedida, amigos e companheiros desde sempre? Lembra do dia em que preparou diligentemente a carteira de identidade falsa para Daniel Simões para que ele se picasse, e escapasse definitivamente das garras da repressão? Lembra-se de sua opção pelo MR-8? Advogado ao lado de Ronilda? Nós não esqueceremos sua dedicada luta contra a ditadura militar.
Vai, meu irmão, vê como é que anda aquela vida à toa, mas não diga nada que me viu chorando, não, não diga. Você tinha consciência desde cedo que negro no Brasil tem que lutar dobrado, e estudou que estudou, e foi buscar forças com os orixás, com seu povo, e por ele se dedicou com todas as energias de sua alma, compartilhando tudo que aprendeu, mestre, doutor pela Sorbonne, e sempre aprendendo com os negros e negras da Bahia, que mestre que é mestre nunca se esquece de que é aluno. Você cotidianamente esforçou-se para não ser o historiador clássico – vampiro do sangue dos mortos. Quis a vida como parceira, em todos os instantes de sua existência.
Vai, meu irmão, e conte sempre que quando você viu a estrela brilhar, compartilhou dela. Mergulhou no PT, entusiasmou-se com a lei que tornou obrigatório o ensino da história dos negros no Brasil, coisa do Lula. Esteve nos governos de Lula e de Wagner, com orgulho e destemor. Nunca vacilou nas crises, botava a cara pra bater, enfrentava qualquer debate, entusiasta da democracia e da luta contra a desigualdade que, claro, incluía os negros, os mais penalizados. Você gostava, meu irmão, de lembrar-se de Amílcar Cabral, que falava da necessidade de pensar com a sua própria cabeça, a partir de suas próprias experiências. E foi o que você fez, vida inteira, para regozijo de todos nós, que iremos beber para sempre na fonte de sua sabedoria.
Vai, meu irmão, e nós o guardaremos aqui entre nós. Que você foi sempre, sobretudo, um homem de pensamento. João José Reis afirma com razão ser difícil enquadrá-lo como especialista de algum assunto. Um intelectual humanista é como prefere chamá-lo, corretamente. Um intelectual que sempre se colocava na defesa dos interesses maiores do nosso povo, das classes trabalhadoras, um intelectual que soube sempre do valor da política e que sempre a defendeu com ardor – a política como arma fundamental para tornar a vida melhor para todos. Vai, meu irmão, pega esse avião, que aqui tentaremos ser dignos de tudo que você nos deixou. Leve o calor do nosso abraço, professor Ubiratan Castro de Araújo. Você nos deixou o recado de que a vida é bela, e nós seguiremos em frente, cultivando e renovando os ideais que semeou. Vai, meu irmão…
*Artigo publicado originalmente na edição desta segunda-feira, 14, do jornal A Tarde.