Por Joaci Góes
Polígrafo é quem escreve sobre vários assuntos. A teoria literária, porém, restringe a aplicação do substantivo a quem aborda diferentes temas, com qualidade. Trata-se de ofício que requer inteligência e curiosidade poliédricas, resultando em sólida formação cultural apoiada em vasta erudição.
Entre os grandes polígrafos brasileiros, os nomes dos baianos Afrânio Peixoto e Pedro Calmon figuram com destaque. Na atualidade, o também baiano professor Guilherme Radel desponta, sem dúvida, como a maior expressão do gênero em todo o País. Afrânio nasceu em 1876 e faleceu em 1947, tendo vivido, portanto, 71 anos. Calmon, nascido em 1902 e morto em 1985, viveu quase 83 anos. Radel, nascido em fevereiro de 1930, continua lépido, fagueiro e dedicado à finalização de seu monumental dicionário dos verbos da língua portuguesa, com o que alarga, ainda mais, a diversidade de sua rica produção. Azar o dele. Diferentemente, de Calmon e Afrânio que, desde cedo saíram da Boa Terra para viver na metrópole, Radel cedeu aos apelos emocionais do berço e permaneceu na Bahia, onde, certamente, santo de casa não faz milagre. Sobre o assunto, o grande jurista Orlando Gomes costumava dizer com indisfarçado orgulho ser ele a única exceção à regra geral, segundo a qual quem opta por viver na Bahia não ganha projeção nacional. Quando João Ubaldo Ribeiro ainda vivia na Bahia, festejados intelectuais torciam o nariz quando eram presenteados com seus livros. Depois de consagrado pela crítica internacional e nacional, nessa ordem, Ubaldo passou a ser tratado como gênio pelos mesmos que subestimavam a qualidade de sua obra.
O reconhecimento pela Bahia do valor intelectual do engenheiro civil Guilherme Radel ainda está muito abaixo do seu excepcional merecimento. Passemos a uma retrospectiva, à vol d´oiseaux, dos feitos que o tornam notável polígrafo.
Até ser consagrado como Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia, Radel ensinou Topografia, Instalações Domiciliares, Hidráulica e Obras Hidráulicas, tendo chefiado o Departamento de Hidráulica e Saneamento da UFBA. Seu espírito de liderança levou-o a presidir a Associação dos Professores Universitários da Bahia. Conferencista destacado em congressos sobre abastecimento d´água, sua marcante atuação profissional faz dele um dos mais respeitados especialistas no campo da engenharia sanitária em todo o país. Na Bahia, seu nome está associado a praticamente tudo que se fez no estado, no campo do saneamento básico, nos últimos 50 anos, de que são prova os trabalhos que projetou, fiscalizou ou realizou nas regiões de Salvador, Itaparica, Camaçari, Feira de Santana, Teodoro Sampaio, Ilhéus, Jequié, Brumado, Andaraí. Obras como o Sistema Adutor de Pedra do Cavalo, as barragens do Joanes e de Ipitanga integram o seu currículo. Fora da Bahia respondeu por obras nos estados do Amazonas, São Paulo, Maranhão, Pernambuco, Espírito Santo, Ceará, Minas Gerais, Paraná e Paraíba. No exterior realizou trabalhos para a Costa Rica e o Peru.
Entre os inúmeros trabalhos técnicos que publicou, incluem-se vários de viés literário entre os quais Política Setorial de Saneamento dentro dos Problemas ambientais Urbanos, O rio São Francisco: a questão da transposição, O aquecimento global, Modelo agropecuário resistente às secas, A Barbará não virou homem e Alvinho foi para o céu, e o clássico A obra pública ou um dos diálogos que Platão não escreveu.
De sua experiência como pecuarista, nasceu o livro Aprendiz de fazendeiro, em que ensina como otimizar os recursos da caatinga para a bovinocultura e a caprinocultura, campo em que se destaca como dos maiores criadores do Brasil.
De sua visita a Cuba resultou o delicioso Cuba Libre, do mesmo nível ou superior a tudo que já se escreveu sobre a famosa ilha caribenha.
Estimulado pelo êxito do opúsculo A carne de sol, Radel, no melhor espírito de Câmara Cascudo, pesquisou como ninguém, ao longo de meio século, para escrever as 1263 páginas que compõem a já clássica trilogia sobre a culinária baiana: A cozinha sertaneja da Bahia, A cozinha praiana da Bahia e A cozinha africana da Bahia. Às suas expensas, visitou países africanos e vários estados brasileiros para exaurir os fundamentos histórico-geográficos e sócio-antropológicos de nossa culinária.
Como memorialista, Radel nos legou Mamãe e eu no paraíso e 80 casos vividos, com que celebrou a passagem de oito décadas de vida.
A partida, drama em dois atos, é o produto de sua incursão no teatro.
O segundo volume do Dicionário Radel, em que disseca a morfologia, sintaxe, conjugação, concordância e regência de 14.501 verbos da língua portuguesa, é o épico trabalho a que tem dedicado substancial parcela do seu tempo. O primeiro já veio a lume.
Em 2011, Radel surpreendeu o mundo literário com a publicação pela Assembleia Legislativa do romance A longa viagem, com avaliação crítica de João Cezar Piorobon e do médico e ficcionista Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia, que concluiu sua avaliação, sustentando que se trata de “um romance denso e surpreendente, na forma e no conteúdo, que acaba levando o leitor, de fato, a uma longa viagem no plano de uma boa literatura”.
É fácil explicar porque um grupo de acadêmicos vai apresentar o seu nome para ocupar, na Academia de Letras da Bahia, a cadeira vaga com a morte recente do renomado escritor James Amado.