Feminicídio e crise civilizatória no Brasil

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Por José Carlos Ruy

O Brasil não é o país cordial que afirma a tese dominante acalentada por tanta gente boa.

Na verdade, o Brasil é extremamente violento – apesar da boa índole e da convivência em muitos momentos tranquila e quase sempre solidária entre os brasileiros.

A violência é, no Brasil, uma nítida realidade de classe, gênero e etnia – e reforça arcaicos preconceitos herdados da escravidão e mantidos pelo patriarcalismo.

Esta realidade contraditória e cruel é mais uma vez revelada com a divulgação dos dados mais recentes sobre a violência pela Central de Atendimento à Mulher.

A violência, no Brasil, tem cor, gênero, idade e classe social. E seus alvos são as mulheres e os brasileiros de pele escura das camadas de menor renda e condição social que moram nas periferias das grandes cidades.

É uma violência atávica, uma das heranças mais perversas da escravidão (que foi extinta há 130 anos). E reforça os preconceitos que perduram entre os brasileiros: o racismo e o machismo.
Situação gravíssima, e vexatória para o país, reiterada através do levantamento divulgado pela Central de Atendimento à Mulher (que, desde 2009, mantém o Ligue 180 para registrar a violência contra a mulher) e que informa a ocorrência, nestes nove anos de atividade, do assassinato de pelo menos 3,1 mil mulheres, e 6,4 mil tentativas de homicídio.

Isto é, 9.500 mulheres foram vítimas de feminicídio ou tentativas contra suas vidas. Foram quase três atentados contra a mulher por dia, sendo um feminicídio por dia e 1,95 tentativas de morte. Mas – atenção – não nos deixemos enganar por estes números, que escondem uma realidade muito pior e mais violenta. Eles só se referem ao registro de ocorrências violentas. O próprio Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, revela que só em 2016 cerca de 4.635 mulheres foram mortas – ou seja, 12,6 por dia – com a ressalva de que mesmo este número não dá conta de todos os casos ocorridos pois ainda é comum a subnotificação de denúncias de assassinato de mulheres, deixando o número de denúncias muito abaixo das ocorrências de feminicídio. Ou seja, os dados oficiais são apenas aproximativos a respeito de uma realidade torpe.

A própria Central de Atendimento à Mulher revela que, desde 2009, foram relatados quase 737 mil casos de violência doméstica contra a mulher – quase 60% deles são agressões físicas e 30% psicológicas – embora todas as agressões, físicas e psicológicas, tenham o mesmo efeito de ferir a alma de suas vítimas. E formam o conjunto de circunstâncias agressivas que podem resultar no feminicídio.

Os dados da Central de Atendimento à Mulher mostram uma inflexão no crescimento da violência contra a mulher que coincide com a inflexão vivida pela sociedade brasileira desde 2015/2016 – tempo em que houve um reforço inaudito da intolerância e do preconceito entre os brasileiros, resultando num crescimento generalizado da violência que faz parte do quadro da grave crise econômica e social resultante do golpe de 2016 e seu cortejo de mazelas – desemprego, empobrecimento da população, desalento, medo crescente entre as pessoas, descrédito quanto ao futuro. Quadro de incertezas e medo gerador de situações de grande ansiedade e intolerância, e violência nas relações entre as pessoas.

Os anos do golpe – da mobilização golpista da direita e da concretização da ilegal tomada do poder em 2016 – foram o tempo de inflexão violenta no Brasil. Um exame meramente visual dos dados divulgados pela Central de Atendimento à Mulher assinala a representação gráfica desta inflexão violenta. Em 2015 – ano da inclusão do feminicídio no Código Penal como crime hediondo – houve 956 registros de assassinatos de mulheres. Quase 14 vezes mais do que as 69 mortes registradas em 2014. Graficamente, a curva subiu como um jato, e permaneceu nesse patamar, em torno de 950 feminicídios ao ano, nos dois anos seguintes (2016 e 2017).

Houve também, entre 2015 e 2016, um salto no registro de casos de violência doméstica, passando de 58.040 para 112.524 – quase o dobro de ocorrências.

Os dados divulgados pela Central de Atendimento à Mulher constituem uma grave denúncia da crise civilizatória do Brasil, agravada nos últimos anos pelo clima de ódio e intolerância generalizado desde a emergência das forças conservadoras que, em 2016, interromperam a democracia e as mudanças sociais progressistas.

 

Fonte: Portal Vermelho