Jornal da Apub l Pandemia no Brasil e as tragédias anunciadas

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O avanço de um governo autoritário e negacionista face a uma tragédia humanitária que se impõe em um país cujo principal traço da desigualdade social é o racismo estrutural.

Medo, crises e a necessidade de medidas emergenciais podem ser pretextos para giros antidemocráticos em várias partes do mundo. No Brasil,  apesar de não surpreender, as respostas do governo de Jair Bolsonaro, que sempre reverenciou a Ditadura Militar, à pandemia são sobremaneira ameaçadoras em um país com uma democracia relativamente jovem repousando em uma velha estrutura colonialista e escravagista – somos o sétimo país mais desigual do mundo, segundo Relatório do Desenvolvimento Humano 2019 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).  A pandemia do novo coronavírus expõe as mazelas brasileiras, novas e antigas: um governo omisso e perverso sacrifica a população, que por sua vez, sofre e tem condições distintas para atravessar a crise humanitária que se desenha cada dia mais grave.

“Quem manda sou eu”, disse Jair Bolsonaro a jornalistas, no dia 29 de abril, ao tratar da sua tentativa de ingerência no comando da Polícia Federal. Tal declaração – acompanhada de fatos como o apoio e participação do presidente em manifestações, realizadas já no período de recomendação do isolamento social, pelo fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal – é, no mínimo, preocupante. “Considerando que num Estado Democrático de Direito os poderes devem ser independentes e harmônicos entre si e a tripartição destes é um dos princípios da Democracia, não se pode deixar de reconhecer que, hoje, há a tentativa de destruição desse equilíbrio por parte do executivo brasileiro, que vem desestabilizando as instituições”, afirma Maria Victória Espiñeira González, professora titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia e coordenadora do Grupo de Pesquisa, Democracia, Participação e Representação Política da Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais.

“Hoje, há a tentativa de destruição desse equilíbrio por parte do executivo brasileiro, que vem desestabilizando as instituições.” Maria Victória Espiñeira

Como um alerta, Espiñeira lembra que no dia 06 de maio, o STF suspendeu a Medida Provisória 954/2020, publicada em 17 de março, que previa o compartilhamento de dados de usuários de telecomunicações com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para produção de estatística oficial durante a pandemia. O entendimento do Supremo é de que a MP violaria o direito constitucional à intimidade e ao sigilo de dados. “Essa era uma das várias iniciativas do governo para aumentar o controle sobre os cidadãos e a pandemia estava sendo utilizada como ‘desculpa’ ”.

A indisposição política de Bolsonaro não é apenas em lidar com os outros poderes – em meio à crise, dois Ministros da Saúde, Luis Henrique Mandetta e Nelson Teich, deixaram o cargo pela impossibilidade de atuar baseados em pesquisas científicas e nas recomendações sanitárias para conter o aumento de infecções e mortes pela covid-19. O governo federal sequer aponta a viabilização da testagem em massa, “o que além de mascarar as estatísticas de óbitos e contaminações, impede a adoção de medidas sanitárias e políticas públicas adequadas para o enfrentamento da crise”, denuncia Felipe Santos Estrela de Carvalho, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia e presidente da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR).

Comorbidades sociais

Além dos números, é preciso considerar outras informações para direcionar as políticas – quem está adoecendo e morrendo no Brasil? “Seguindo tendência verificada nos EUA, a Covid-19 revelou-se mais letal entre pretos e pardos no país. Embora minoritários entre o número dos hospitalizados pela doença (22%), negros representam 33% dos óbitos causados pelo novo coronavírus, segundo dados do Ministério da Saúde. A existência de comorbidades, como diabetes e hipertensão, aliadas à precariedade social e econômica explicam em parte a maior exposição das populações negras aos riscos da pandemia”, explica Estrela. O discurso de relativização das medidas de isolamento social, assim como o negacionismo da gravidade da doença, “reforçam essa tendência de evisceração das vidas negras”. E continua: “diversos indicadores socioeconômicos, relativos à renda, escolaridade, mercado de trabalho, saneamento básico, aglomeração residencial, insegurança alimentar, mortes prematuras por letalidade policial, crimes dolosos ou doenças evitáveis, além da dificuldade do acesso à saúde pública dão os contornos necropolíticos e estruturalmente racistas que marcam a relação das populações negras com o Estado e com a sociedade civil brasileira em geral”

“O discurso de relativização das medidas de isolamento social reforçam essa tendência de evisceração das vidas negras.” Felipe Santos Estrela

Somente após pressão de organizações dos movimentos negros, o Ministério da Saúde passou a coletar e divulgar os dados da pandemia a partir da condição racial. No mesmo sentido, os povos indígenas e entidades de apoio vêm denunciando a subnotificação e omissão do Estado e, por isso, criaram o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, composto por indígenas das cinco regiões do país e colaboradores com o objetivo de acompanhar a evolução da pandemia nos territórios. Segundo levantamento do Comitê, até dia 18 de maio, mais de 44 povos foram atingidos, 540 indígenas contaminados e 103 mortos, contrastando com os 23 óbitos e 371 casos confirmados pela Secretária Especial de Saúde Indígena.

Efeito do coronavírus em indivíduos divididos por raça/cor
No Brasil, a covid-19 é proporcionalmente mais letal entre os negros (pretos+pardos)

Ressalta-se que, além do medo de mais um ciclo de dizimação, os povos originários estão enfrentando o avanço das invasões por grandes corporações do agro-hidronegócio e principalmente dos garimpos ilegais devido à ausência de fiscalização neste período de isolamento, agravado pela desregulamentação, sucateamento e desmonte dos órgãos da função agrária e ambiental como IBAMA, ICMBIO, INCRA e FUNAI. “O avanço da pandemia da Covid-19 parece incrementar o cenário de expropriação territorial contra as populações tradicionais. Violência institucional pública e privada, precariedade no acesso aos serviços de saúde e insegurança alimentar têm sido as principais ameaças denunciadas por essas comunidades”, lamenta Estrela.

Democracias em risco?

Na Hungria, sob a égide do combate ao coronavírus, o parlamento aprovou a concessão de poderes extraordinários para Viktor Órban governar por decreto sem limite de tempo e sem controle. Na Turquia, o Ministério do Interior do governo de Recep Tayyip Erdogan divulgou, em comunicado oficial, dados sobre o rastreamento de perfis nas redes sociais, identificação de suspeitos e detenção de mais de 400 pessoas críticas à gestão da pandemia e/ou ao governo, somente no mês de abril. O governo Uruguaio do presidente Luis Lacalle Pou busca aprovar um projeto de reformas para o país através da Lei de Urgente Consideração, composta por 502 artigos e que prevê, por exemplo, a atribuição de mais poderes às forças de segurança e endurecem o Código Penal. Além ainda, da escalada anticiência e xenófoba do Estados Unidos de Donald Trump. “Fazer previsões de um modo geral é sempre uma atividade arriscada”, explica a professora Espiñeira. No entanto, “é possível perceber que existe uma tendência autoritária, principalmente diante dos acontecimentos recentes da América Latina. Nos últimos anos, vimos a direita assumindo na Hungria, na Ucrânia, com um perfil nitidamente fascista. Na União Europeia, a xenofobia em relação aos imigrantes e, mais recentemente, aos refugiados é a plataforma política de vários partidos”. Em contrapartida, há exemplos de solidariedade entre as nações e líderes que apontam para o fortalecimento do papel do Estado na garantia de condições de vida digna e bem-estar, como a vice-prefeita de Amsterdam, Marieke Van Doorninck que tem defendido propostas econômicas que priorizem as  políticas básicas para segurança alimentar, acesso à água potável, energia, moradia, saneamento, educação, saúde, igualdade de gênero, renda e voz política. “Uma proposta nova de oferecer ao cidadão uma condição em que a igualdade se aproxima à ideia da liberdade, condições necessárias a uma democracia substantiva”, afirma.

Organização e resistência

A eleição de um político como Bolsonaro e a sua forma de conduzir a atual crise demonstram que há muitas tarefas para consolidar a Democracia formal e a democratização da sociedade brasileira. Se de um lado, “a carne e o sangue do sistema, que seriam seus conteúdos sociais de justiça e de igualdade”, não são preocupações do Estado liberal como diz Espiñeira, de outro experimentamos, como aponta Estrela, as diversas articulações dos povos para exigir que “os órgãos responsáveis cumpram com sua função legal em promover os direitos fundamentais à saúde, moradia, trabalho digno, renda e alimentação”, e paralelamente, construir suas alternativas baseadas na organização comunitária.

Por: Anaíra Lôbo/Ascom Apub