Jornal da Apub l Reforma Administrativa: mais um passo para o desmonte

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Desde a aprovação da Emenda Constitucional 95, que instituiu o teto de gastos públicos, uma das principais medidas alcançadas após o golpe de 2016, o debate econômico é dominado pelo mote do corte de despesas. Da Reforma Trabalhista, passando pela Reforma da Previdência até a PEC Emergencial (EC 109) e, agora, a Reforma Administrativa os discursos passam por dois pontos principais: 1) que o Brasil estaria “quebrado” e, portanto, seria imperativo reduzir
drasticamente as despesas; 2) que existiria um excesso de direitos – ou privilégios – especialmente no funcionalismo público – impedindo o investimento em outras áreas, como saúde e educação. O que essas ideias procuram esconder, no entanto, é a impossibilidade de fazer os investimentos sociais necessários numa nação profundamente desigual como o Brasil caberem sob um “teto” artificial (criado há 5 anos e que se quer transformar em dogma) e que são servidores e servidoras públicos os/as responsáveis por fazer funcionar as políticas essenciais para a população.

Esse discurso antiestado tem raízes históricas. De acordo com o professor Valdemar de Araújo Filho, do departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, existe um processo social e político que procura criminalizar o Estado e reduzir o seu papel na sociedade e no desenvolvimento nacional, ligado à financeirização da economia brasileira e do próprio setor produtivo: “Não só surgiu uma rede muito poderosa integrada por instituições financeiras, agências de risco, bancos de investimentos e corretoras, como também as grandes corporações bancárias tradicionais absorveram ou se associaram a grandes grupos industriais, e parte dos lucros destes grupos passou a ter origem em rendimentos especulativos financeiros, vinculados principalmente à rolagem da dívida pública, lucros não operacionais. Essa mudança na morfologia social do empresariado convergiu com a onda do neoliberalismo que ganhou força a partir dos anos 90”, explica.

Quem também aponta os problemas dessa narrativa é Ana Luíza Matos de Oliveira, Coordenadora-geral da Secretaria Executiva da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público (Frente Servir Brasil) e uma das organizadoras do livro Economia pós-pandemia: Desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico. “O debate econômico brasileiro tem sido dominado por dogmas e por um “terrorismo fiscal”, que é inibidor da discussão de alternativas. O Brasil não está quebrado e essa narrativa de que é preciso cortar mais e mais, porém sempre dos mais pobres, ela serve a interesses definidos, afirmou.

Servidores/as como alvo

O funcionalismo público – ou antes, parte dele – acaba sendo alvo preferencial dos cortes, especialmente no governo atual, cujo projeto de desmonte e morte se expressa, no Ministério da Economia, pelo ultraliberalismo de Paulo Guedes. Mas o excesso de pessoal ou de privilégios é, também, uma narrativa. “Segundo o IBGE, até 2016, ano do golpe institucional contra um governo que valorizava um pouco o servidor público, apenas 12% dos trabalhadores brasileiros eram servidores públicos, alocados em todos os níveis de governo. Essa é a média da América Latina, uma região com muitos problemas sociais. Mas em países mais desenvolvidos, o percentual passa a ser 21% em média, e em países organizados sob a lógica política de Estado de Bem-Estar Social, como Dinamarca, Noruega e Suécia, mais de 30% da população economicamente ativa está no serviço público. Na verdade, a criminalização contra o servidor público tem o objetivo de reduzir os custos estatais com serviços essenciais à população e reservar grande parte do fundo público para o serviço da dívida pública, tranquilizando os poderosos setores rentistas que controlam parte da máquina estatal brasileira. E toda a grande imprensa está envolvida nessa cruzada, porque a mídia é parte fundamental na construção desse discurso. Criminalizam principalmente os funcionários comuns de carreiras do Executivo enquanto deixam fora da crítica, militares, juízes e a alta burocracia política do sistema de gestão econômica”, aponta Valdemar Filho.

Já Ana Luíza chama atenção para a necessidade de aprofundar o debate sobre projeto de país: “a discussão sobre ‘excesso de servidores’ precisa ocorrer dentro da reflexão de qual país queremos ter, queremos construir. Já atingimos o nosso ideal de bem estar, de acesso aos direitos sociais, de redução das vulnerabilidades? Se sim, ok, não precisamos mais aumentar a quantidade de servidores. Porém, se não chegamos – e para mim, pelo menos, este é o caso – é preciso ter mais servidores. Políticas públicas e direitos sociais são feitas de/por servidores públicos”. Ela também ressalta que “as mulheres e a população negra são fortemente impactadas pela redução das políticas públicas, justamente por delas mais dependerem. Todos os setores mais vulneráveis – indígenas, quilombolas, a população LGBTQI+, moradores de vilas e favelas, da região rural, nordestinos e nortistas etc. – são os grandes perdedores da austeridade fiscal”.

PEC 32: quais as consequências

A Reforma Administrativa está materializada no texto da PEC 32 – embora alguns dispositivos já tenham sido inseridos nos gatilhos EC 109 como as possibilidades de congelamento de salários e suspensão de concursos. A PEC 32 ataca especialmente a forma de entrada no serviço público, a estabilidade do/a servidor/a e cria divisões entre as carreiras típicas de Estado (a serem estabelecidas via lei complementar), que manterão a maioria dos direitos existentes hoje, e as demais, que ficarão mais vulneráveis. “PEC 32/2020 altera dispositivos sobre servidores e empregados públicos e modifica a organização da administração pública direta e indireta, com alteração dos artigos 37; 39; 39-A; 40; 40-A e 41-A, da Constituição Federal. Tais alterações extinguem o Regime Jurídico Único do servidor público, e, consequentemente a estabilidade no serviço público, criando novas formas de contratação pela administração pública. Assim, criam os cargos típicos de estado e o cargo com vínculos de prazo determinado e indeterminado, repassando para esses últimos cargos a mesma precariedade e limitações impostas pela CLT”, explica o assessor jurídico da Apub, o advogado Pedro Ferreira.

Outras consequências graves da Reforma são destacadas por Ana Luíza como a previsão de que o/a servidor/a poderá perder o cargo “até mesmo por uma decisão de órgão, deixando o servidor totalmente exposto a perseguições. Um segundo ponto é que a PEC coloca o princípio da subsidiariedade como um princípio da administração pública. Com isso, o setor público se torna complementar ao privado, e não o contrário. E a PEC também constitucionaliza uma série de acordos do setor público com o privado, inclusive com o compartilhamento de estruturas do setor público. Com isso, é possível que as instituições federais de educação superior sejam fortemente afetadas.”

Para Valdemar Filho, “a PEC 32 não é, de fato, e em sentido rigoroso, uma reforma do Estado. Ela não trata nem de aspectos organizacionais do Estado e nem das suas formas de atuação no contexto das demandas por serviços da sociedade brasileira. Ela expressa, principalmente, as tendências hegemônicas vigentes nos últimos trinta anos de criminalizar os funcionários e focar as medidas principalmente na redução do gasto público. Nesse sentido, tem o objetivo de sinalizar para o setor financeiro da economia que o governo estabilizará as contas públicas”. Uma evidência disso é que a PEC deixa de fora, juízes, desembargadores militares e procuradores. Também dá autonomia ao Presidente para extinguir ministérios, autarquias e fundações, sem a necessidade de aprovação pelo Legislativo em casos em que não gere despesas. Ainda, permite que cargos de liderança e assessoramento possam a poder ser 100% ocupados por pessoas de fora do serviço público, abrindo espaço para compadrios e corrupção.

Ana Luíza e Valdemar concordam que as Universidades serão umas das principais prejudicadas com a aprovação da Reforma. “Ela [a PEC] fornece uma excessiva autonomia para medidas discricionárias por parte do Titular do Poder Executivo, com possibilidade de mudar muito o perfil organizacional e funcional das entidades autárquicas e fundações que integram a universidade pública no Brasil. Esse será um dos principais aspectos que atingirá as universidades, com o potencial desmonte de ordenamentos organizacionais já consolidados e a extinção de instituições de pesquisa. Outro aspecto a se considerar serão os efeitos das contratações provisórias e terceirizações sobre o perfil acadêmico das universidades. A inclusão de quadros provisórios e terceirizados nas universidades irá contribuir para desorganizar a vida acadêmica e debilitar as instituições de pesquisa, e a longo prazo se tornará a forma predominante de seleção de docentes porque o projeto do governo tem o principal objetivo de reduzir custos.”, afirma o professor. “A reforma administrativa permite que coordenação de curso e chefia de departamento nas instituições públicas, por exemplo, seja assumida por pessoas alheias ao magistério e ao serviço público. É possível imaginar a situação de um “interventor” nestes cargos nas instituições federais. Com isso, em meio a ataques ao livre pensar, aos cortes de recursos para as instituições, ameaças do tipo “Escola sem partido” etc, este mecanismo trazido pela reforma pode ampliar a intervenção em instituições federais. É bom lembrar que já são 20 as instituições federais no país com “interventores”, que tem como reitores pessoas que não foram eleitas pela comunidade universitária”, alerta Ana.