Em entrevista, Adriana Lima, presidente da União dos Moradores da Jureia, explica porque o Estado cometeu um erro ao destruir a moradia de famílias caiçaras no Vale do Ribeira
No dia 4 de julho, funcionários da Fundação Florestal e a Polícia Ambiental demoliram duas casas na comunidade tradicional caiçara do Rio Verde e Grajaú. As moradias haviam sido construídas por jovens caiçaras, descendentes de moradores centenários daquela comunidade. Os policiais cumpriam medida administrativa baseada em falsos argumentos.
No mesmo dia, a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente de São Paulo (Sima) afirmou, em nota oficial, que a região é desabitada desde a década de 80 e que há, na própria Jureia, lugares onde construções são permitidas. Os argumentos da Sima contradizem documentos oficiais que apontam a presença dessas comunidades nessa época. Também ignoram que essas famílias sofreram, na última década, um processo gradual de expulsão de seus territórios tradicionais em prol da preservação ambiental, sem considerar que foi a sua presença ali que garantiu que a mata resistisse.
O cotidiano dessas famílias é marcada pela luta diária para garantir seu direito à terra e às práticas tradicionais.
O ISA conversou com Adriana Lima, Caiçara, presidente da União dos Moradores da Jureia, membro da Coordenação Nacional das Comunidades Tradicionais Caiçaras e membro do Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira. Na entrevista, Adriana explica porque a ação do último dia 4 foi irregular.
Leia a entrevista:
Os moradores tentaram autorização com a Fundação Florestal para construir as casas demolidas?
Adriana Lima: Em 12 de junho de 2017, seguindo os procedimentos burocráticos instituídos, três moradores caiçaras netos e filhos de caiçaras nascidos e criados na Jureia, protocolaram solicitações de construção de moradias na comunidade Rio Verde e Grajaúna. A resposta da Fundação Florestal veio apenas no dia 12 de setembro de 2018, portanto com mais de um ano de atraso e descumprindo a Lei Estadual 9.509/97, que afirma que os órgãos ambientais têm três meses para se manifestar em processos de licenciamento, “sob pena de responsabilidade funcional grave de seus titulares”. Os moradores fizeram novas solicitações no dia 16 de janeiro de 2019, que não foram sequer respondidas até a data atual. A vistoria é falha e mentirosa, pois não se constrói três casas em local de difícil acesso e sem estrutura de estrada em curto prazo de tempo. Segundo os moradores tradicionais caiçaras, as moradias são simples, mas foram consolidadas e ocupadas há pelo menos quatro meses.
A Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (SIMA) alega que a área em questão é “a área do Rio Verde é declarada patrimônio mundial da humanidade pela Unesco” e que existem diversos estudos em andamento no local, que tem regras de uso e ocupação de acordo com a Lei Estadual 14.982/13. Esses instrumentos inviabilizam a ocupação tradicional caiçara?
Adriana Lima: Não inviabilizam, uma vez que toda a região do Rio Verde no município de Iguape faz parte da área declarada como patrimônio mundial da humanidade pela Unesco, e não apenas a área do Rio Verde. Todas as comunidades que habitam há séculos a região, especialmente na área onde foi criada a Estação Ecológica Jureia-Itatins em 1986, sofrem com a pressão do Estado para desocuparem suas áreas tradicionais, que e reprime suas práticas tradicionais de manejo do território. Centenas de pesquisas na região apontam as comunidades tradicionais como parceiras na coleta de dados, tanto pelo acolhimento e cuidado com os pesquisadores que lá adentraram, como pela relação estreita e harmoniosa que possuem com a natureza, relação da qual deriva grande parte de sua experiência e conhecimento. Em alguns casos foram os principais informantes, como são chamados por alguns pesquisadores, e aparecem nos agradecimentos de suas teses, monografias e dissertações.
A Lei 14.982, de 2013, prevê que os caiçaras têm direito à moradia em áreas mesmo fora dos trechos destinados às Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS). Os jovens autuados que tiveram suas casas demolidas sem direito de defesa não são invasores e cumprem todos os requisitos da lei: nasceram na Jureia e são netos de Onésio do Prado, cadastrado oficialmente e reconhecido pelo governo do estado como morador da comunidade do Rio Verde e Grajaúna, onde ainda vive, ao lado de Nancy Prado, moradora caiçara pertencente a linhagem presente no local há pelo menos 200 anos.
A SIMA alega que “a área desmatada onde foram construídas as casas não há qualquer comunidade caiçara instalada desde 1980”. Essa informação é procedente?
Adriana Lima: O argumento acima é falso. O local é habitado e habilitado para moradia de comunidades tradicionais há séculos. Desde a década de 80, a população caiçara da Jureia sofre coerção do Estado para abandonar suas áreas de ocupação tradicional. , A versão da Sima nega a existência da comunidade do Rio Verde e Grajaúna. Apesar do processo de expulsão das famílias caiçaras ao longo de décadas, as comunidades entre Praia do Una e Rio Verde, atualmente possuem sete núcleos familiares, pois os outros moradores saíram, por serem retiradas as suas condições de trabalho , estudos, acesso e por solidão. Mas segundo o Cadastro Geral de Ocupantes, a lista oficial de moradores cadastrados na Lei do Mosaico, em 1990, apontava a presença de 22 famílias. Além disso, tanto os avós, Seo Onésio do Prado e Nancy Prado, como os pais de uma das famílias (cuja casa não foi demolida ainda) possuem casas autorizadas na comunidade do Rio Verde e Grajaúna.
Em parceria com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade Federal do ABC e a Universidade de São Paulo (USP) Leste, as comunidades caiçaras da Juréia elaboraram um Plano de Uso Tradicional (PUT), robusto, considerado inovador por vários especialistas. Esse plano foi apresentado presencialmente ao diretor executivo da Fundação Florestal, Rodrigo Levkovicz, em junho de 2018 e contém o histórico de ocupação da região ao longo de décadas. Isso comprova que, apesar do tremendo esforço do governo paulista em expulsar os moradores tradicionais de suas terras ancestrais, os caiçaras têm resistido inclusive no Rio Verde e Grajaúna, propondo novos instrumentos de governança territorial e de acordos para o viver caiçara.
A Fundação Florestal alega que foram criadas Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) que permitem a construção de moradias na Jureia. A comunidade caiçara do Rio Verde e Grajaúna foi contemplada nesse processo?
Adriana Lima: A criação e/ou revisão de Unidades de Conservação no Estado de São Paulo, historicamente, ignorou os direitos dos povos e comunidades tradicionais, e não foi diferente na Jureia. A criação do Mosaico não ocorreu para abrigar as comunidades tradicionais da região. O próprio Laudo Histórico e Antropológico (2010), encomendado pela Fundação Florestal, atesta que a criação do Mosaico foi um processo conflitivo, que envolveu a reivindicação de associações de moradores para legalizarem o território que ocupavam historicamente. Mas nem todas foram contempladas em RDS, inclusive as comunidades tradicionais identificadas por ela no Laudo. Lembrando ainda que realocar as comunidades tradicionais sem ampla discussão é violação grave de direitos, além de estar em desacordo com instrumentos internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A nota da SIMA afirma que houve constatação de supressão de vegetação nativa de restinga alta, numa área considerada o “coração da Jureia”. Como era a área antes da construção e como se deu a notificação do órgão estadual?
Adriana Lima: No dia 13 de junho, após denúncia, dois guardas parque foram até uma das casas (agora já demolida de forma brutal), para averiguar e tomaram conhecimento da moradia de um jovem casal, membros de duas famílias de caiçaras da região da Juréia. Somente comunicaram ao morador que a polícia ambiental iria ao local fazer autuação, ponto. A área não foi degradada, nem houve supressão de vegetação, pois a escolha para a construção da casa foi definida por ser uma área onde a avó do jovem morou durante grande parte da sua vida, até casar-se. A localidade mantém características do que as comunidades chamam de taperas, onde é possível encontrar frutíferas como abacate, jaca, limão, mexerica e outras, além de plantas ornamentais, e que comprovam que a área possui ocupação humana ancestral.
A autuação ocorreu somente no dia 18 de junho de 2019, data que consta no auto de infração emitido pela polícia. Nesse dia, a Fundação Florestal realizou diligência junto à polícia ambiental até a localidade quando ocorreu autuação de um morador tradicional caiçara. No entanto, a pretensão da Fundação Florestal já era executar imediatamente a demolição da casa, pois levaram pés de cabra. Como o casal morava na casa, o advogado presente orientou que não podiam realizar o desfazimento por se tratar de moradia. Mesmo assim o Diretor Regional Edson Montilha da Silva e o Gestor da Estação Ecológica Aruã Fernandes Antunes Caetano, acompanhados de sete guarda-parques e de três policiais ambientais, tentaram executar, mas não tiveram êxito devido a objeção dos moradores.
Em relação à menção “coração da Jureia”, ela não está tipificada na legislação ambiental que criou o Mosaico. Este é um argumento de conotação simbólica, provavelmente utilizado para aguçar a sensibilidade dos ditos “ambientalistas”. Deixando de mencionar que a região já era habitada há séculos por comunidades caiçaras que mantiveram, até a chegada dos ambientalistas, suas práticas sustentáveis antes mesmo desse termo existir. Jureia, aliás, era o nome de uma comunidade que não se localizava no Rio Verde.
A SIMA alega que a demolição das casas se deveu ao descumprimento de embargo de construção. As obras continuaram após a notificação da polícia?
Adriana Lima: Não houve descumprimento do embargo visto que a área construída medida pelos policiais no ato da autuação não foi ampliada.Além disso, as outras duas casas só foram identificadas no dia 28 de junho por sobrevôo, e seus moradores foram autuados no dia 29 de junho, quando estiveram no local dois policiais ambientais e 02 guardas parque da Fundação Florestal, efetivando autuação. Portanto o embargo da primeira casa se deu no dia 18/6 e das outras duas somente no dia 29/6. Além disso, a comunidade informou a Defensoria Pública do Estado de São Paulo do ocorrido no dia 18/6, quando a mesma expediu, no dia 19 de junho de 2019, recomendação à Fundação Florestal, sustentando que a Lei Estadual nº 14.982/2013 garante expressamente o direito de permanência e existência digna das famílias tradicionais caiçaras, em qualquer área da Juréia, inclusive no Rio Verde e Grajaúna.
O Ministério Público Federal, também recebeu a denúncia, por parte da comunidade Rio Verde e Grajaúna, sobre a violação de seus direitos, truculência e ameaça da Fundação Florestal na primeira investida de demolição de uma das casas em 72 horas.
Iniciou-se processo de diálogo com a Fundação Florestal, propondo conversar com a comunidade para entender melhor o processo e estabelecer acordos. A reunião com a comunidade foi agendada para o dia 24 de junho, quando comunidade relatou ao procurador que existiam mais duas casas construídas simultaneamente, o que não era de conhecimento da Fundação Florestal. Ficou definido que o procurador relataria o fato ao diretor executivo da Fundação Florestal, com quem estava dialogando. O acordo até o momento era de que ele não seria feita nenhuma investida na comunidade e a comunidade respeitaria o embargo. Além disso, a comunidade saiu da reunião acreditando que teria possibilidade de diálogo com a FF e Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente, o que não ocorreu. Após o sobrevoo no dia 28 de junho, quando o diretor executivo da Fundação Florestal sobrevoou a região da Juréia e se deparou com as três moradias, ocorreu o embargo das outras duas moradias.
O rompimento do diálogo por parte da FF se deu no dia 3 de julho a tarde, sem justa motivação, e provocando a execução imediata, no dia 4 de julho de 2019 pela manhã, através de ordem administrativa, sem garantia de defesa, contra três famílias caiçaras. A consequência da ação foi a demolição completa de duas casas, despejando as famílias que nelas moravam, sem que se oferecesse qualquer alternativa habitacional a elas, nem cuidados com seus pertences.
Seu plano perverso foi isolar os moradores em dia chuvoso num local de difícil acesso, onde nem familiares, nem amigos e nem a imprensa puderam adentrar.
Quanto à determinação administrativa de autotutela não poderia ser exercida em função de ser moradia consolidada há meses além de colocar em jogo direitos fundamentais de comunidade caiçara, que recebe proteção especial na legislação. A autotutela impede que a comunidade exerça adequadamente seu direito de defesa e subtrai do poder judiciário a última palavra sobre esse conflito.