Grande tabu na sociedade brasileira, falar de aborto é um grande desafio, porém necessário, principalmente em tempos de perseguição à liberdade de pensamento, inclusive na ciência, com o recrudescimento do conservadorismo. É neste campo que atua Jamile Guerra Fonseca, enfermeira obstétrica e professora em Saúde da Mulher, no Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Ela concedeu entrevista para falar de seu livro “Aborto legal no Brasil: avanços e retrocessos”, que será lançado no dia 04 de agosto, às 17h, na Livraria Cultura do Salvador Shopping.
O tema, carregado de estigmas morais e sociais, é passível de diversas abordagens, entre elas está a compreensão da prática do aborto e de suas consequências como uma questão de saúde pública: no Brasil, a prática clandestina e insegura é a quarta causa de morte materna. “Quando é que o Estado vai olhar para a vida das mulheres, diante dos dados de tantas mortes por ano?”, questiona.
Apesar do ponto de partida ter sido sua área de atuação, a professora explica que o livro aborda questões como direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no Brasil e no mundo, o contexto político e a luta das mulheres, o aborto legal no país e as limitações do sistema de saúde para garantir esses direitos às mulheres. “Dentre a permissividade da lei, porque ainda tem tanta dificuldade no acesso?”, indagação sobre a qual traz importantes reflexões na entrevista. E de forma contundente, afirma: “é para evitar a morte das mulheres que estamos lutando pela causa da legalização do aborto”.
O aborto legal e o sistema de saúde
“O interesse em pesquisar a questão do aborto veio por ocasião da especialização em obstetrícia. Eu entendi que as maternidades em geral direcionam muito mais a atenção ao parto e ao nascimento e pouco se discute as questões da assistência ao aborto, à mulher que aborta. E quando fui atuar em unidade de saúde da família, atuei em planejamento familiar, e não me sentia preparada para falar de aborto, não era uma prática nem minha nem de minhas e meus colegas. Existe um grande desconhecimento por parte dos profissionais de saúde que estão na atenção primária para falar sobre aborto, por falta de treinamento, de capacitação e também por uma série de valores morais, religiosos e culturais. E dentro da prática da maternidade, é onde a gente se vê de cara com o aborto, lá é o que choca. E por que você não faria um aborto, começa a julgar quem fez. Então, é um aspecto discriminatório, preconceituoso, de julgamento, em que coloca a mulher num lugar de subordinação, de humilhação, de constrangimento em uma assistência que ela tem direito a ter. Ela não tem direito a fazer o procedimento, mas nós temos um manual de abortamento que fala onde e como podemos prestar assistência, e geralmente a mulher chega na assistência em período de finalização do aborto. Porque vou piorar isso? Porque vou desqualificar minha assistência? Então, vem muito carregado de toda essa bagagem associada a uma falta de conhecimento sobre o que temos hoje, que é a morte de milhares de mulheres, e a falta de capacitação, porque até então não vejo o investimento em capacitação de profissionais sobre isso. A gente vê capacitação sobre o parto, as diretrizes do parto, o recém-nascido. Inclusive nos eventos, pouco se fala sobre aborto e quando se fala, estamos nas últimas mesas e com tempo escasso. Onde está o aborto? E o aborto é uma realidade. No Brasil, é a quarta causa de morte materna, e no mundo, segundo dado da Organização Mundial da Saúde, é uma taxa de 42 milhões de abortos por ano. Débora Diniz [professora da UNB que está sendo ameaçada e agredida por ser pesquisadora no tema] traz, na última pesquisa dela, que de cada cinco mulheres, uma aborta. Ou seja, é muita gente.
Temos uma parcela de mulheres que continua com a gravidez indesejada, e uma série de fatores psíquicos que vem depois disso; tem as mulheres que continuam abortando clandestinamente, e uma parcela que tem direito ao aborto legal, que é o tema do livro, e que ainda assim sofrem limitações no acesso ao serviço de saúde dentro das três brechas possíveis na lei, que são o risco de vida, a violação (estupro) e mais recentemente desde 2012, a liberação para fetos anencéfalos. Então, ainda as mulheres que tem permissão para abortar não conseguem ter acesso ao que deveria porque a gente continua emperrando o serviço de saúde.”
A conjuntura política e os direitos das mulheres
“Atualmente, no doutorado, trabalho com itinerários abortivos de mulheres no Nordeste e até chegar aqui, passei por imersões no aborto legal, pela discussão de direitos sexuais e reprodutivos no Brasil e no mundo, questões de gênero e feminismo. E disso, surgiu a proposta de lançar o livro, que traz uma perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil e no mundo, e o que é o aborto legal no Brasil.
Falar de aborto não é fácil. Lançar um livro sobre aborto não é fácil. Enfrento desafios na minha prática diária, na sala de aula trazer aborto é ouvir todos os tipos de fala. O que o livro traz é um pouco sobre o aborto legal, até onde vai esta acessibilidade ao direito de abortar. A mulher tem direito, mas ela consegue fazer o aborto legal? O que o quadro político traz?
É desafiador o tempo inteiro falar de aborto e de ter tantas vozes contrárias como os chamados “movimentos pró-vida”, que não entendem que estamos defendendo uma causa pela vida das mulheres. Por exemplo, uma mulher que tem gestação de feto anencéfalo, ela vai buscar na justiça um respaldo para que ela consiga chegar até a maternidade, porque muitas exigem que ela apresente um laudo ainda. Ou seja, trata-se de lutar pela desburocratização do serviço. Se ela tem o diagnóstico, vamos adiantar! E trata-se do que ela tem dentro do serviço de saúde. Onde estão as mulheres que tem gestação de fetos anencéfalos, porque não se fala nelas? Onde estão as mulheres que foram abusadas sexualmente? A gente tem serviço de referência de aborto legal que foca em mulheres vítimas de violência sexual. Temos hoje em média 68 serviços de aborto, que não são identificados e inclusive não estão na lista do Ministério da Saúde. Liga para o Ministério, e eles dizem que a lista não é divulgada. Mas não é um direito? O Estado não coloca que é um direito? Mas para além do serviço de referência, qualquer maternidade pode aceitar a mulher que tem direito ao aborto legal.
O contexto político ainda traz algumas questões atuais como a “bolsa estupro”, o estatuto do nascituro, a questão do abusador reconhecer ou não a paternidade. Olha as discussões no nosso cenário político. Ou seja, é a perpetuação do estupro na nossa sociedade. Uma vez que está naturalizando isso, então agora vamos solidificar.
Ainda tem as discussões sobre a “pílula abortiva”, no caso das pílulas de emergência. Será que daqui um tempo vão proibir também o uso do anticoncepcional? Vai chegar um momento que a Igreja tome conta de tal modo que proíba isso, porque a mulher é criada para ser um mero ser reprodutor. Por isso, que o livro traz avanços e retrocessos no Brasil, é realmente fazendo esse link com a política que a gente vive. Temos um Estado que se diz laico, mas é fundamentalista, religioso. E os aspectos religiosos estão falando cada vez mais forte. A religião não pode influenciar nas nossas políticas, nas leis. E temos grandes avanços como as vitórias das Convenções Internacionais, a mulher com a questão da luta pelos direitos humanos, o movimento feminista que vem à frente disso, vem ganhando várias causas e em meio a tudo isso, temos os retrocessos fruto do fundamentalismo, influenciando no nosso Estado e na morte de milhares de mulheres.”
Patriarcado e controle da vida das mulheres
“A questão da autonomia das mulheres também é muito discutida no livro, trago a discussão sobre a autonomia sexual e reprodutiva. Dentre a permissividade da lei, porque ainda tem tanta dificuldade no acesso? Então, eu vejo que tem um olhar que vem do histórico do patriarcado, um olhar de controle sobre esses corpos que até em casos permitidos pela lei, tem que causar entraves. Quando a gente faz uma revisão mundial, buscando literaturas internacionais, vemos que inclusive nos países que o aborto é legal, boa parte dos profissionais continuam impedindo a assistência de algum modo, seja na questão burocrática, seja no acolhimento, no tratamento dessas mulheres, na perpetuação da violência. E nesse sentido, temos uma lente de gênero muito forte, que nos faz enxergar que isso é o controle sobre os corpos, é não aceitar a autonomia das mulheres e é a perpetuação dos ciclos de agravo de sofrimento, que faz com que as mulheres busquem o aborto clandestino, seja a mulher que não deseja ser mãe ou a mulher que foi fruto de abuso, seja em caso da gestação do feto anencéfalo ou em caso de risco de vida.
A felicidade e importância de trazer a discussão do aborto é trazer a discussão de uma redoma que vem com o aborto. Apesar de ser um tema antigo, é muito silenciado. O que eu espero ao trazer a discussão sobre o aborto legal hoje é dizer que até o que a gente pode hoje não está sendo exercido como deveria. Quando é que o Estado vai parar para olhar a vida das mulheres, diante dos dados de tantas mortes por ano?
O aborto não é método anticoncepcional. É para evitar a morte das mulheres que estamos lutando pela causa da legalização do aborto. Não significa que vai todo mundo vai fazer aborto porque é legal, o movimento é oposto: quando legaliza, a taxa cai. Porque é uma questão de planejamento familiar, é uma questão de oferecer condições socioeconômicas, é oferecer dentro do serviço um planejamento que satisfaça essas necessidades e trazer à tona a legalização de algo que pode ser direito de escolha da mulher. É pela vida das mulheres!
Tem poucas pessoas trazendo este tema, e uma das nossas líderes, a Débora Diniz vem sofrendo ameaças, está sendo agredida por defender uma causa. Nos solidarizamos com esta situação e lutamos para que este estigma se rompa, que não seja um tabu para que possamos falar sobre isso.”