No período da ditadura militar (1964 – 1985), o loteamento no serviço público era generalizado e os funcionários não possuíam estabilidade funcional. Quase nenhum era aprovado por concurso. Por isso, eram obrigados a ceder aos interesses dos governantes e dos militares, mesmo se fosse para cometer alguma ilegalidade.
Outros tantos recebiam cargos justamente para facilitar esquemas de desvios de recursos ou corrupção.
Os mecanismos de fiscalização não existiam ou estavam amordaçados: a imprensa era censurada, a oposição (de cidadãos ou de políticos) calada, o Parlamento era controlado. A população não podia escolher os próprios governantes e nem reclamar de gestões ruins.
Não só isso. Os serviços públicos não eram prioridade e, muito menos, universais.
Durante os 21 anos de ditadura militar, a saúde não era considerada um direito. A definição de que ela “é direito de todos e dever do Estado” veio com a Constituição Federal (CF) de 1988. Foi então que surge o Sistema Único de Saúde (SUS), decisivo no combate à pandemia do novo Coronavírus.
Foi na ditadura que os municípios reduziram a obrigação de aplicar 20% do PIB em educação para meros 2,72%. Muitos dos problemas educacionais que vivenciamos hoje são herança daquele período.
Ao final da ditadura, quase 25% da população ainda era analfabeta. Hoje, esse número foi reduzido para cerca de 7%. Em 1980, apenas 28% das crianças entre 4 e 6 anos estavam na escola, em 2015 esse número já havia saltado para 90%.
Em 1980, por exemplo, o Brasil daquela época tinha pouco mais de 120 milhões de habitantes. Hoje, somos mais de 220 milhões. Ou seja: a herança maldita deixou ainda mais desafios para o país de hoje.
Corrupção
Assim como o governo de Jair Bolsonaro, a ditadura militar tentou fazer parecer que combatia a corrupção. E, assim como estamos vendo agora (no caso dos irmãos Miranda, que revelaram um enorme esquema do governo para superfaturamento na compra de vacinas), a ditadura também não passou em branco.
O governo investia pouco na expansão dos serviços públicos, mas usava os recursos em benefício próprio.
A diferença, à época, era que a corrupção não aparecia nos jornais porque havia censura, falta de transparência e a repressão. Era proibido mostrar os malfeitos dos militares.
É por isso que muitos desses casos foram e continuam sendo descobertos ainda hoje, décadas depois.
E isso só não vem à tona com mais frequência porque, diferentemente de outros países mais desenvolvidos, o Brasil não possui leis que determinam a abertura obrigatória dos arquivos governamentais para o público depois de algumas décadas.
Tudo isso ajuda a construir outro mito, que envolve a segurança pública. Muitos acreditam que os governos militares, por serem um regime fechado, combatiam a criminalidade com seriedade. Isso é um baita engano.
A relação corrompida de agentes de segurança com criminosos era comum. Policiais e militares recebiam propina para libertar pessoas e não incomodavam chefes de organizações criminosas que já dominavam partes das grandes cidades. Não por acaso, as principais facções, que ainda hoje operam nos grandes centros, surgiram durante a ditadura.
No começo da ditadura, em 1964, ocorriam 10,4 mortes violentas a cada 100 mil habitantes na cidade de São Paulo, a maior do país. Ao final da ditadura, esse número tinha saltado para 36,9 a cada 100 mil habitantes.
Além disso, agentes da repressão corromperam juízes e médicos, formaram grupos de extermínio e entraram para a elite do jogo do bicho.
Um dos casos mais notórios foi do delegado Sérgio Fleury, acusado de comandar um esquadrão da morte responsável por quase 200 execuções. Era protegido do regime e, mesmo em meio às acusações, recebeu condecorações e honrarias. Curiosamente, o governo de Jair Bolsonaro usa o mesmo expediente para afagar o ego de apoiadores, condecorando pessoas que nada têm feito de positivo pelo país.
Na ditadura, as prisões de corruptos eram seletivas. Amigos do regime não eram punidos. No máximo, tinham que dividir com políticos, apoiadores ou militares parte dos recursos desviados. Com o Ato Institucional 5 (AI-5), o governo poderia tomar os bens e recursos de pessoas envolvidas em corrupção. De 1.100 processos abertos, em torno de 50 houve algum tipo de punição, o restante foi engavetado ou acobertado (muitos em troca de propina).
Enquanto membros do governo viviam com mordomias e luxo, parte considerável da população passava fome e, mesmo assim, não podia protestar. Os casos de corrupção só foram sendo revelados conforme o poder de controle e o desgaste do regime militar cresciam, a partir de 1976. Vamos relembrar apenas alguns dos principais:
- Empreiteiras e construtoras ganhavam gordos contratos em troca de propina. Recentemente, o fundador da maior construtora do país admitiu que a corrupção no setor era comum na ditadura
- Multinacionais, como a gigante General Eletric (GE), venderam trens mediante o pagamento extra para membros do regime.
- Esquemas de superfaturamento de terrenos pelo Banco Nacional de Habitação (BNH) movimentaram cerca de US$ 200 milhões.
- 1ª Companhia do 2º Batalhão da Polícia do Exército era centro do contrabando no Rio de Janeiro
- Governadores biônicos (indicados pelo regime) enriqueceram ilegalmente, mas eram protegidos. Há casos envolvendo Antônio Carlos Magalhães (ACM), Paulo Maluf e muitos outros
- Agropecuária Capemi, dirigida por militares, desviou pelo menos US$ 10 milhões para beneficiar agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI)
- Fraude do farelo, que gerou prejuízos de US$ 700 milhões com empréstimos do Banco do Brasil para produtores que não pagavam de volta
- Generais de brigada que iam para Brasília contavam com US$ 27 mil para comprar mobília.
- Há muitos outros casos como o relatório Saraiva, Coroa-Brastel, Halles, Delfin, BUC, Lume, Luftalla, Áurea, Atalla, TAA, Dow Chemical, projeto Jari, Petropaulo, Brasilinvest
- Supersalários de indicados pelo governo era comuns e chegavam até US$ 4,2 milhões por ano (mais de R$ 20 milhões, em cotação de junho de 2021). Diretores de algumas empresas do governo recebiam até 17º salário.
- Jatos da FAB eram usados por ministros, sem controle de gastos. Um dos ministros chegou a ter 28 funcionários em sua residência, pagos pelo governo. Uma farra.
- Os altos funcionários não precisavam pagar aluguel de mansões nas áreas mais caras de Brasília, contas de água, luz e telefone, conservação de piscina, criadagem, IPTU, vigilância nem despesas com o cartão corporativo.
- A corrupção se irradiava por órgãos e empresas do governo como a CSN, secretarias estaduais, Sunaman, Assistência Médica da Previdência Social, Habitasul, Banco Nacional de Crédito Cooperativo
- Grandes obras estiveram envolvidas em irregularidades: rodovia Transamazônica (US$ 1,5 bilhão e não foi finalizada), Ponte Rio-Niterói (US$ 674 milhões), usinas nucleares de Angra (num esquema com o governo alemão), hidrelétrica de Tucuruí, superfaturamento na compra de fragatas (navios de escolta) e muitos outros.
A corrupção era tão frequente que um documento da agência de inteligência dos Estados Unidos (a CIA), revelado em 2018, mostra que eles tinham conhecimento de que havia corrupção sistêmica durante a ditadura militar (1964 a 1985).
Não tinha ou não era visível?
Vamos lembrar que não existia (obviamente) internet durante a ditadura. Muito menos redes sociais onde qualquer notícia se espalha como rastilho de pólvora. Não havia telefones celulares com seus aplicativos de troca de mensagens rápidas (e se houvesse, seria duramente controlada).
A disseminação da informação e das notícias dependia dos jornais, rádios e televisão. Como a censura controlava previamente o que os veículos podiam publicar, raramente saía algo que afetasse os governos militares.
É por isso que muitas pessoas que viveram naquela época têm a sensação de que “se não vi, é porque não existiu”. Outros tantos que não viveram repetem a mesma visão, assim como usam o mesmo argumento para minimizar as torturas e assassinato de opositores.
É por isso que até hoje muitas pessoas acreditam na mentira de que não havia corrupção na época da ditadura.
Mas as condutas ilegais não envolviam apenas dinheiro. Havia uma extensa rede de corrupção envolvendo colaboradores do regime, incluindo juízes (que aceitavam processos absurdos, confissões desmentidas e perícias mentirosas). Médicos fraudavam autópsias e autos de corpo de delito e faziam vista grossa às marcas de tortura em pacientes ou em mortos.
A ausência de órgãos de controle não permitia a fiscalização dos serviços públicos, dos órgãos de governo e das estatais.
Isso mudou com a democratização. Aí vieram a Controladoria-Geral da União (CGU), Tribunal de Conta da União (TCU) e dos Estados (TCE), Ministério Público (MP) e Conselho De Controle De Atividades Financeiras (COAF), que são alguns exemplos de instituições que fiscalizam o Poder Público.
Além disso, a Lei da Transparência, criada em 2009, jogou uma luz aos gastos do Estado brasileiro ao obrigar que a União, estados e municípios divulguem, na internet, seus gastos.
Diferentemente do imaginário que as propagandas dos extremistas tentam criar, a ausência de transparência, marca da ditadura, era a principal ferramenta para encobrir a corrupção.
Mas isso não ficou apenas no passado. São frequentes as notícias de crimes sendo cometidos ainda hoje por militares. Quantas vezes você já não ouviu no noticiário que houve uma apreensão de arma de uso exclusivo dos militares, que estavam nas mãos de organizações criminosas?
No escândalo da compra superfaturada de vacinas pelo Ministério da Saúde (que citamos no começo do texto) no governo Bolsonaro, um dos “chefes” que pressionou o servidor para aprovação acelerada das vacinas é, justamente, um militar indicado politicamente.
A realidade é que a ditadura acabou com os serviços públicos e facilitou a corrupção, em sua face mais perversa.
Fonte: APUB